“Se o arrependimento matasse” a sua possibilidade de ter um filho

Não vejo como poderá não ser respeitada a decisão de uma mulher grávida que não quer entregar a criança que por si foi gerada, independentemente dos contratos que tenha assinado e dos gâmetas que originaram a criança não serem seus.

A gestação de substituição é, sem dúvida, um tema complexo. Como o são todos os temas que implicam a vida e tomadas de decisão importantes sobre ela, como a eutanásia ou a interrupção voluntária da gravidez, para dar apenas dois exemplos. Vivemos num mundo de falácias, onde os princípios ideológicos parecem valer mais que o bem-estar das pessoas. Respeitar a autonomia e a autodeterminação de alguém é um princípio central das nossas sociedades atuais. Não pode haver dúvidas sobre isso. É um caminho fundamental para nos ajudar a compreender qual o melhor interesse de cada um. Será muito difícil, se não impossível, definir o que é melhor para alguém sem o envolver nessa decisão. Mas tal não significa que seja um caminho exclusivo. Ou seja, respeitar a vontade de alguém deve garantir que estamos a fazer aquilo que é melhor para essa pessoa. A não ser que o nosso objetivo seja, hipocritamente, aliviar a nossa consciência: afinal “foi ela/e que pediu!”.

O consentimento informado, pilar do exercício dos cuidados em saúde, reside na ideia de que para fazermos boas escolhas teremos que ser devidamente informados sobre todas as implicações que essa escolha possa vir a ter. Contudo, não será fácil acreditar que o profissional de saúde consiga fazer a pessoa compreender tudo aquilo que pode acontecer em função das múltiplas escolhas possíveis. Assim, a melhor possibilidade existente é a construção de uma relação de confiança entre ambos, sendo isto tão mais verdade quanto mais complexa for a decisão.

Por um momento detenhamo-nos na decisão de alguém em levar a cabo uma gravidez por outra pessoa, e no final entregar a criança que se desenvolveu durante nove meses no seu próprio útero. Haverá decisões mais complexas que se possam tomar na vida? Julgo difícil.

E ao assim julgar, como prever cenários quando consideramos as conhecidas alterações químicas e emocionais na gestante ao longo da gravidez? Ou quando imaginamos o impacto que a ligação que se constrói entre o feto e a gestante poderá ter? Ou até que ponto refletimos sobre a forma como o casal beneficiário vivenciará o contexto desta relação tripartida? É, portanto, fácil perceber que aquilo que sentimos e decidimos hoje podemos sentir (e decidir?) de forma diferente amanhã. 

Compreende-se, por isso, a decisão do Tribunal Constitucional quando considerou que uma gestante poderia mudar de ideias e não entregar a criança no fim da gravidez. Compreende-se, também, que essa será sempre uma situação dramática para os beneficiários e, potencialmente, também para a criança.

Tenho-me preocupado com a investigação a este nível, pois acredito que precisamos de aprofundar o conhecimento para tentarmos orientar os decisores e informar as pessoas nas suas decisões. E, quanto mais fundo vou, mais concluo que a melhor solução será apoiar as pessoas nestes processos para tentar evitar este tipo de situações. Acredito que a intervenção psicológica é a melhor ferramenta disponível para tal e que seria muito benéfico que fosse mandatória nestas situações.

Não vejo como poderá não ser respeitada a decisão de uma mulher grávida que não quer entregar a criança que por si foi gerada, independentemente dos contratos que tenha assinado e dos gâmetas que originaram a criança não serem seus. São situações raras, felizmente, mas que a acontecer terão que merecer uma resposta adequada. A intervenção psicológica junto dos intervenientes e até das suas famílias, no início do processo e antes da decisão, permite mais informação, despista dúvidas, discute angústias e, continuando durante o processo, permite intervir em momentos mais difíceis. Deste modo, diminui-se a possibilidade de arrependimento e limita-se a possibilidade de outros prejuízos para os intervenientes e para a futura criança.

Aos nossos decisores políticos compete, considerando os diferentes cenários, prevenir problemas em vez de colocarem a cabeça na areia e fazerem de conta que tudo sempre correrá bem. Apesar do que já se caminhou, resta óbvio que há muito a melhorar na legislação sobre gestação de substituição. Há questões relacionadas com a discriminação em relação às pessoas homossexuais e às mulheres e homens solteiros, outras associadas à responsabilidade dos médicos e restantes profissionais, e ainda outras relativas ao altruísmo associado ao processo. Por agora, importa reafirmar que, mesmo que o Estado o deseje, não são as normas que promovem os melhores resultados para as pessoas. Antes, é necessário promover a confiança das pessoas nos profissionais e dar oportunidade e condições aos profissionais para as fazerem sentirem-se apoiadas e compreendidas, contribuindo para uma tomada de decisão que resulte de facto no seu melhor interesse, no melhor interesse da criança e, deste modo, no melhor interesse de toda a sociedade.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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