Rosas em regaços alheios

Uma vez mais, a falência do Estado em áreas de soberania é patente. Um exemplo a somar a outros.

E o fogo voltou, “lavrando” município atrás de município. O Observatório Técnico Independente para Análise, Acompanhamento e Avaliação dos Incêndios Florestais e Rurais, criado pela Lei n.º 56/2018, de 20 de Agosto, terá referido que vai fazer um relatório sobre os “incêndios” que agora ocorrem, mas só em Outubro, alegadamente para manter “algum distanciamento e frieza na análise das ocorrências”. Confesso que o fundamento é infeliz. “Frieza”? “Distanciamento”?

Uma vez mais, a falência do Estado em áreas de soberania é patente. Um exemplo a somar a outros. A falta de planeamento só não nos sobressalta porque a ela erradamente nos habituámos, o que não devíamos, muito pelo contrário. Ele há tanta gritaria por questões menores. E sobre as essenciais? Em matérias tão sensíveis como a segurança das pessoas (e também dos bens), não pode haver nem frieza nem distanciamento, mas objectividade. Deve ser exactamente o contrário do referido pelo Observatório.

Note-se que não estou a defender a precipitação, mas antes o início de uma imediata avaliação, até porque, do início dos incêndios até Outubro, podem perder-se elementos dificilmente apuráveis ao fim de tantos meses. Ninguém em seu são juízo pode deixar de clamar por proximidade, solidariedade e segurança, para o que afinal os nossos impostos deveriam servir.

Mas os nossos impostos de pouco servem para a Segurança, a Saúde, a Justiça (neste último caso nunca uma legislatura terminou com tantas greves). Definitivamente, somos individualistas, burocráticos, anárquicos e subservientes. Por vezes penso se não seremos, colectivamente, personagens de Servidão Humana, de Somerset Maugham. É que, se não somos, parecemos.

Aceitamos hospitais caóticos, o inferno que é obter um simples Cartão do Cidadão, com marcações a meses de distância, “raves” em estabelecimentos prisionais, a Autoridade Tributária a esmagar-nos e a vigiar-nos, as instituições a perderem a sua independência, só para citar alguns exemplos, curvando a cerviz ao poder instituído.

Quanto ao investimento, qualquer projecto produtivo tem de imediato milhares de opositores: há sempre inconvenientes. Então, onde iremos buscar, sem esquecer as melhores regras de arte, os nossos rendimentos?

Mas que queremos nós? O que se vê, num país quase integralmente anestesiado? Sofre, que gostas? Não!

Pessoas a defenderem-se, sós, tentando travar a morte, o fogo, os adiamentos de consultas, sem apoio e com o desespero inscrito nas almas, entre outros exemplos.

Mesmo antes de Pedrógão, os responsáveis políticos e administrativos deviam estar preparados. Mas depois de Pedrógão (Pedrógão símbolo, pois outras áreas arderam e outras populações sofreram), o agora sucedido é inexplicável e revela uma insensibilidade gritante.

Como pode, por exemplo, alguém recomeçar uma vida aos 80 anos ou esperar por uma consulta, que pode de nada já lhe servir? E onde estão todas as ajudas, todos os meios doados, por sentido cívico, para minorar o sofrimento das populações? Também não são histórias claras, para ser branda. Mistério.

Como de costume, a desgraça alheia acaba com rosas em regaços alheios.

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