Ocidentalismo maligno

Os intelectuais da banalização do racismo dão voz a medos, a preconceitos e à ignorância que já existiam na sociedade. Renegam assim o que deve ser a sua função social. Combater a banalização do racismo não é apenas defender os direitos humanos dos negros, dos ciganos ou dos muçulmanos. É combater a destruição da democracia.

Como acontece muitas vezes em Portugal, a vaga engoliu já meio Mundo quando cá chega, como sucede agora com a defesa da “superioridade da civilização ocidental”.

Em julho de 1996, aqui, no PÚBLICO, publiquei um artigo de crítica à teoria do choque das civilizações. Samuel P. Huntington era um intelectual prestigiado, com vasta obra publicada, incluindo um livro sobre a terceira vaga democrática. Porém, a sua tese fazia do “outro” o novo inimigo do Ocidente.

As verdadeiras motivações das teses de Huntington só se vieram a tornar evidentes mais tarde. Em Who Are We? The Challenges to America's National Identity (2004), Huntington explora o tema que o tornou numa referência dos supremacistas brancos americanos. De acordo com as previsões censitárias, sublinha ele, em 2050 33% da população dos Estados Unidos seria hispânica, 16% negra e 10% asiática. Para ele o credo liberal em que assenta a democracia americana estava ameaçado pelo facto de brancos e cristãos passarem a ser uma minoria.

As teses de Huntington foram desconstruídas por autores como Amartya Sen em Identidade e Violência - a Ilusão do Destino. O erro básico de Huntington foi o de considerar possível definir o comportamento humano a partir de uma “única categoria de acordo com as fronteiras das civilizações” (ou religiões). Huntington, como todos os defensores do relativismo civilizacional, oculta que nenhuma cultura é pura e que todas são fecundadas por outras culturas. Lembremos a importância de pensadores indianos para a filosofia grega, da arte africana para a pintura europeia e que o Islão é, desde as suas origens, um fertilizador da cultura europeia.

No centro desse debate está hoje a democracia e a sua identificação com a civilização ocidental, em particular, com o protestantismo anglo-saxónico. É o que faz Huntington ao considerar o Islão incompatível com democracia, e o que fazem muitos ao considerarem os africanos condenados às ditaduras. Esquecem-se, todavia, de que foram africanos negros, como Nelson Mandela, que conquistaram a democracia, num país onde dominavam as teorias da supremacia branca.

Foram amplamente expostos, não só os erros analíticos de Huntington, como o perigo mortífero das suas teses. Apesar da pertinência das críticas, a teoria de Huntington banalizou-se em sectores das elites políticas e intelectuais na busca de um novo paradigma, para sustentar as opções estratégicas no Mundo no pós-Guerra Fria. A guerra do Iraque fez parte da “estratégia civilizadora” dos neoconservadores de democratização pela força. Donald Trump chegou ao poder com o discurso huntingtoniano sobre a identidade americana ameaçada pelos “não-brancos”, nomeadamente os latinos. 

Para Alain Finkielkraut, hoje membro da Academia Francesa, autor de Identidade Triste, não são os latinos a principal ameaça, mas os muçulmanos, como defendeu o filósofo Renaud Camus, autor de A Grande Substituição e apoiante de Le Pen. Para ambos, a identidade francesa e os valores da República estão ameaçados pela “imigração de povoamento”, porque os imigrantes não-europeus, nomeadamente os muçulmanos, são “inassimiláveis”, não descendem dos “autóctones”, ou seja, dos gauleses que Finkielkraut associa “à paixão pelas igrejas românicas” e à “delicadeza do vocabulário” de Montaigne. Argumento absurdo quando pensamos, designadamente, em Amin Maalouf, Marie NDiaye ou em Leila Slimani, todos grandes escritores franceses, prémios Goncourt, descendentes de emigrantes.

Na língua portuguesa, o exemplo mais significativo de um intelectual de prestígio que se colocou ao serviço de um projeto de superioridade civilizacional talvez seja o do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. A sua doutrina do luso-tropicalismo serviu para esconder a brutalidade da opressão racial, nas colónias portuguesas, e para criar o mito de que os portugueses não são racistas. Ainda hoje sofremos as suas consequências.

Em Portugal, talvez por não existir uma larga comunidade muçulmana, os alvos do racismo ocidentalista são os negros e os ciganos. Em todos os casos – latinos nos Estados Unidos, muçulmanos em França ou africanos em Portugal –, o que fazem os racistas é negar a muitos nacionais dos seus países, porque percebidos como bárbaros, a possibilidade de serem plenamente cidadãos. Tentam congelar a cultura nacional, impedindo que enriqueça, como no passado, com o contributo de outras culturas.

Os intelectuais da banalização do racismo dão voz a medos, a preconceitos e à ignorância que já existiam na sociedade. Renegam assim o que deve ser a sua função social, a de colocar a sua inteligência e saber ao serviço da verdade e da análise da complexidade das sociedades. Hoje, quando tantos são vítimas da vaga de populismo racista que atravessa a Europa e Trump lança uma campanha racista para ser reeleito, o que se espera dos intelectuais é que sejam generosos e solidários com os que sofrem. Não que os agridam com a violência da sua linguagem.

Entre nós houve quem tenha declarado não ter sido por acaso que os zulus não tenham escrito Romeu e Julieta, tal como Berlusconi referindo-se aos muçulmanos: “Porque é que ‘nós’ temos Mozart e Michelangelo e eles não?”. Vivi em Joanesburgo durante o Apartheid e não poucas vezes ouvi coisas semelhantes para justificar o regímen.

Aos que olham para os “outros” como bárbaros , é  bom lembrar o que escreveu Claude Levy Strauss, na sua obra Raça e História: “O bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie”.

Combater a banalização do racismo não é apenas defender os direitos humanos dos negros, dos ciganos ou dos muçulmanos. É combater a destruição da democracia pelos nacionalistas identitários, em suma, é defender a nossa liberdade.

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