Club Sintra Football, os heróis sem lar

O clube lisboeta, fundado apenas em 2007, subiu ao Campeonato de Portugal. E quer, “em cinco ou dez anos, estar na I Liga”. E tudo nasceu a pensar na Champions.

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A festa da subida ao Campeonato de Portugal do Club Sintra Football DR

Club Sintra Football. “Sintra”, para os amigos. E amigos não faltam a um clube jovem, que não tem freguesia de nascença, não tem um campo seu e não tem património. Tem, apenas, a força dos homens, mas um número considerável – e estranho – de pessoas nos jogos.

Na maioria dos estádios, um adepto entra, passa o torniquete e senta-se no seu lugar na bancada. No Sintra, entra, dão-lhe as boas-vindas, entregam-lhe uma almofada para melhorar o conforto, dão uma manta, se estiver frio, e convidam-no para um lanchinho, ao intervalo. À borla.

“De onde vem toda esta gente? Não faço ideia. Não sei mesmo. O grande segredo é o colinho que damos às pessoas. Ninguém vem ao Sintra por causa do lanche, mas as pessoas sentem-se bem com esse colinho. E antes, quando não tínhamos um tostão, fazíamos um chá de limão e andávamos pela bancada a dar às pessoas, com bolacha Maria. Às vezes, distribuo cachecóis do Sintra pelas pessoas. Ainda há uns tempos dei uns 100, num jogo. Mais: um hotel deu-nos três cobertores, cortámos cada um em quatro e fizemos mantas, para ninguém passar frio nos jogos. Aqui, cada jogador tem de se sentir jogador e cada adepto tem de se sentir na final do Jamor. E na bancada temos dois sofás individuais. É mais ou menos uma zona VIP”, detalha Dinis Delgado.

Dinis é o fundador do clube. E presidente. E delegado ao jogo. E director de comunicação. E secretário. E director criativo. E gestor do bar. E cozinheiro. E chefe da claque, quando calha. Dinis é tudo, num clube que não tem nada.

“Não temos património. E tudo o que temos funciona debaixo deste espaço de 50 metros quadrados, cedido pelo Real SC”. O espaço de que fala o presidente é um anexo frio, debaixo da bancada do campo número 2 do Real SC, em Monte Abraão, local onde o clube treina e joga, quando as camadas jovens do Real não utilizam o campo.

Naquele anexo, há cozinha, balcão, mesas, sofás, roll ups de flash interview, rouparia, sala de trabalho e até um quarto. Tudo ali, bem juntinho, como se não houvesse mais espaço. Na verdade, não há.

O Sintra Football é um clube sem luxos materiais, mas humanamente luxuoso. “Dois miúdos dormem aqui. E como treinamos tarde, em todos os treinos damos jantar a todos os jogadores E arranjamos cursos e trabalho aos que precisam. Esta é a nossa parte social. O nosso roupeiro morava debaixo da ponte do comboio e nós trouxemo-lo da rua. E distribuímos comida, com a organização Solfraterno. Fazemos donativos e, pontualmente, juntamo-nos na distribuição de comida aos sem-abrigo”.

O telefonema do alívio

Como é que se vive assim? “Com paixão e dedicação. Trabalho para o Sintra para aí 150 horas por mês. E não digo que é mais porque, se publicar isto, eu terei vergonha. Todos os dias dou cinco horas ao Sintra e já estraguei dois casamentos por causa disto. Estou em 90% dos treinos e tenho intervenção em 95% do que acontece. O primeiro golo do Sintra, na Taça de Lisboa, há uns anos, foi meu”, recorda Dinis, que começou por ser jogador do clube que fundou.

“Em 2004, criámos uma equipa de amigos, para jogar no Inatel. Subimos e fomos para a distrital. O nome estrangeiro? Escolhi Club Sintra Football, porque percebi que um dia que cheguemos à I Liga ou à Europa mais facilmente conseguimos um patrocinador estrangeiro ou uma grande marca”, disparou, consciente do valor futebol-negócio, já depois de, em 2018, ter dado uma explicação bem mais emocional: “Queria que o meu filho, um dia, jogasse no Club Sintra Football, assim muito british, para ser um nome internacional. Um dia mais tarde, quando formos conhecidos mundialmente, soa melhor”.

E talvez esta mudança na explicação ateste o crescimento do Club Sintra Football, em geral, e do presidente, em particular. A postura pode ser mais profissional e o clube pode ter crescido desportivamente, mas a vivência diária é a mesma. Difícil e com mais engenho do que dinheiro. E com um desafio diferente, agora que subiram dos distritais aos nacionais.

Na feira para fazer dinheiro

“Agora, no Campeonato de Portugal, estamos preparados para o abismo. Provavelmente, vamos ter um dos dez orçamentos mais baixos. Vamos conseguir estar lá através de parceiros e patrocinadores, mas também vamos fazendo pela vida. Estamos na feira de Sintra a vender coisas para fazer 300 ou 400 euros”, conta, dando outro exemplo do que é gerir um clube com tão pouco.

“Sabe como fazemos as bandeiras para apoiar na bancada? Compramos um lençol ou uma cortina de casa de banho, cortamos em quatro, pintamos, pomos um fio de eletricidade e temos uma bandeira”.

Mas é com bandeiras de pano e feiras em Sintra que vai chegar à I Liga? “Claro que não. Tenho noção de que sozinho não passo do Campeonato de Portugal. E nem sei se consigo lá ficar. Precisamos, rapidamente, de um parceiro para alavancagem financeira”.

A meio da entrevista, houve um telefonema. E um suspiro de alívio. Com direito a sorriso e esticar de pernas na cadeira, como se o mundo tivesse ficado mais leve. E ficou. Pelo menos, o do Club Sintra Football. “Com este telefonema, fiquei a saber que, a partir deste momento, não devemos um tostão a ninguém. Devíamos dois mil euros ate há uns minutos”.

Querem já o Benfica

Sem dívidas, mas também quase sem dinheiro, o objectivo a curto prazo é a manutenção no Campeonato de Portugal e apanhar um grande na Taça, quer pelo prémio financeiro da prova, quer pela festa única.

“É um sonho. Estamos malucos à espera do sorteio. Imagine lá isto: o Sintra, que está a dar uma entrevista debaixo de uma bancada, a receber o Benfica. Nesse dia, não iríamos ter mais adeptos no estádio do que o adversário. Seria a única vez”.

Com o clube a melhorar, lentamente, a situação financeira e desportiva, o Sintra Football quer fixar-se num campo seu. Mas não será, certamente, a tempo de receber o desejado Benfica na próxima temporada.

Apesar de garantir que o clube sempre foi bem tratado pelo Real SC – que lhe deu apoio logístico, essencialmente –, Dinis Delgado quer dar um passo em frente. Mas devagar.

“Temos acordo com um clube da região. Vamos investir e, em 2020/21, teremos um espaço de 22 mil metros para nós”, avançou, apesar de não revelar o local.

Club Sintra Football, um grupo de rapazes que começaram por não ter títulos, mas já têm. Começaram por não ter adeptos, mas já têm. Ainda não têm casa própria, mas vão ter.

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