Pela primeira vez um restaurante português devolve estrela Michelin

Chef Henrique Leis, cujo restaurante deteve a distinção durante 19 anos consecutivos, explica ao PÚBLICO que a pressão se tornou demasiada. Necessidade de se libertar dos padrões estabelecidos pelo Guia também contribuiu para a decisão.

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Chef Henrique Leis (ao centro) no seu restaurante Vasco Celio / vila joya

Pela primeira vez na história da restauração portuguesa, um cozinheiro vai devolver a sua estrela Michelin. Henrique Leis, dono e chefe de cozinha do restaurante com o mesmo nome em Almancil, freguesia do concelho de Loulé, decidiu abdicar da distinção que detém há 19 anos. Ao PÚBLICO, explica que sempre soube que este seria o desfecho da estrela recebida no ano 2000, seis anos após a abertura do espaço algarvio.

“A decisão já estava a ser pensada há muitos anos. Quando ganhei a primeira estrela, disse para mim mesmo que ia ficar com ela durante cinco anos. Depois de terem passado esses cinco anos, pensei que seria melhor esperar até se cumprir uma década. Quando cheguei aos dez, pensei que ia até aos 15 e depois até aos 20. Porém, cheguei à conclusão de que duas décadas é muito tempo, muito stress e 19 ou 20 anos vai dar exactamente à mesma coisa. Estou a poupar um ano da minha vida para relaxar um pouco e achei que este seria o momento ideal para entregar a estrela Michelin”, afirma.

Henrique Leis chegou a Portugal há 24 anos, vindo do Brasil, onde nasceu e cresceu, para trabalhar na Quinta do Lago. Uma das maiores inspirações para o cozinheiro brasileiro foi o destacado chefe de cozinha francês Paul Bocuse, um dos nomes mais destacados da “nouvelle cuisine”, movimento culinário cujas matrizes ainda se encontram presentes no restaurante do chef  — que recebeu a visita da Fugas em 2008

Com o aumento no volume de negócio intimamente ligado à distinção da marca de pneus surgiu também a necessidade de uma “vigilância extrema” e a “incerteza constante” de quando teriam lugar as visitas do inspectores da Michelin. “Tenho amigos bem mais novos do que eu que estão à beira de um ataque cardíaco de tanto nervosismo, por não terem paz”, exemplifica. O crescimento da clientela foi notório nos primeiros anos após a primeira estrela e, apesar de reconhecer que há muita gente fiel ao livro de recomendações, o chef mostra-se confiante com a manutenção do número de clientes, avançando que não está a pensar baixar os preços.

“No primeiro, segundo ano é quando registas mais essa diferença. Depois, o número de clientes permaneceu equilibrado. Manter uma estrela durante 19 anos é muito stressante. Faço uma cozinha que está equiparada aos preços de Lisboa e vou tentar mantê-los. Mesmo com a estrela não é dos mais caros. Vamos ver o que acontece”, explica o cozinheiro de 60 anos. Para além da exigência, o desejo de uma maior liberdade criativa contribuiu fortemente para esta decisão: “Não quero mais estar obrigado a obedecer aos padrões do Guia. Ficarei com mais liberdade para experimentar coisas novas, mantendo as mesmas bases, claro, mas sem a pressão.” 

As reacções à notícia têm sido positivas, garante, com muitas pessoas a congratular o chef pela coragem. Apesar de já ter notificado oficialmente (através de uma carta) a Michelin, a decisão final só deverá ser formalizada quando o novo Guia for revelado, a 20 de Novembro de 2019, em Sevilha. Agora sem a estrela, Henrique Leis promete a mesma experiência aos clientes. Produtos de qualidade, a mesma equipa e maior felicidade na confecção dos pratos que o tornaram reconhecido internacionalmente.

Henrique Leis não é o primeiro a devolver a estrela

Apesar de ser caso único na restauração portuguesa, não é a primeira vez que a Michelin vê estrelas a serem devolvidas pelos chefs. Tal como Henrique Leis, o chef francês Sébastien Bras renunciou às três estrelas que o seu restaurante Le Suquet manteve durante 18 anos. A pressão e o stress funcionaram como rastilho para a decisão que chocou a comunidade gastronómica. “Qualquer refeição que saia pode ser inspeccionada. Isso significa que, todos os dias, um dos meus 500 pratos que sai da cozinha pode ser criticado”, explicou Sébastien Bras, citado pela AFP. “Somos inspeccionados duas a três vezes por ano, nunca se sabe quando”, concluiu.

Este caso marcou a primeira vez que o Guia Michelin permitiu que um restaurante renunciasse voluntariamente às suas estrelas. Antes, tal apenas seria possível se o chef se aposentasse, se o conceito do restaurante mudasse drasticamente ou se o espaço encerrasse. Em 2008, Olivier Roellinger fechou o seu restaurante, premiado com três estrelas Michelin, em busca de uma vida mais serena. 

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