Mais cidade para os lisboetas

Hoje, a cidade mais sustentável do ponto de vista social, económico e ambiental é a cidade densa que, para ser mais eficaz, deve existir em zonas bem infra-estruturadas, que é claramente o caso da Avenida Almirante Reis. É isto que estão a fazer as grandes capitais europeias.

Renovar um quarteirão inteiro em Lisboa é uma oportunidade rara, pelo enorme potencial de promover novas dinâmicas no bairro onde se insere e de criar melhores condições de fruição por parte de quem o habita ou que com ele se cruza. É também uma oportunidade de abrir uma reflexão importante sobre a cidade que temos e aquela que ambicionamos. É o caso do projecto do quarteirão da Portugália, que vem congregando opositores e defensores e trouxe a público distintos argumentos. Numa operação deste tipo, a resposta mais provável de um promotor seria a de manter privativo aquilo que é seu, traduzindo-se num quarteirão fechado sob a forma de condomínio privado. Era assim o projecto que estava anteriormente aprovado, cuja construção poderia até já estar concluída. Não foi, e abriu-se uma oportunidade para a cidade.

Com a mudança de proprietários do quarteirão, esse projecto, cuja área era superior à do actual, foi posto de lado e abriu-se um processo de diálogo com a Junta de Freguesia de Arroios e a Câmara Municipal de Lisboa para construir uma estratégia baseada numa visão contemporânea de cidade, de espaço público e das práticas sociais e culturais: abrir o quarteirão à população, transformando o que seria um espaço para benefício de poucos numa praça pública acessível a todos. No fundo, dando resposta a uma reivindicação crescente da população: mais cidade para os lisboetas. Mas a ideia foi ainda mais longe: em vez de fachadas contínuas de 150 metros, o quarteirão deveria ser permeável e incorporar generosos atravessamentos transversais que, além de aumentarem o desafogo visual, ligam as ruas envolventes entre si e à nova praça no interior do quarteirão, passível de ser fruída por todos.

O cenário ganha ainda mais relevância para a cidade com o restauro da antiga fábrica, a renovação da icónica cervejaria, a criação de um novo espaço cultural público e um programa de usos que reflecte a diversidade da Avenida: habitação, escritórios, estacionamento público, supermercado, lojas e esplanadas. Tudo isto em redor de um novo espaço público ajardinado que vai aumentar com a incorporação da parcela do Edifício Planasa. E, ao contrário de muitos projectos nestas circunstâncias, neste quarteirão não há nem habitação nem hotéis de luxo.

Se, até aqui, parece evidente que há um aumento de conforto e de qualidade de vida na zona que sai valorizada, porque não é o projecto consensual? Porque, para produzir as referidas quatro passagens nas frentes de quarteirão, essa área de construção tem de ser reposta em altura num dos edifícios projectados, o qual, à semelhança dos melhores exemplos da história da arquitectura, tem ainda o valor de assinalar a praça e uma época na cidade. Mas há ainda quem conteste a pertinência da construção em altura naquele local, por a entender como inadequada ao contexto, bem como por eventuais efeitos negativos como a sombra, que não passa de um mito. E há quem ponha em causa a densidade de construção, embora esteja de acordo com o PDM.

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Sobre a localização, a oportunidade será o primeiro argumento a favor, pois terão que passar décadas ou séculos até vermos outro quarteirão devoluto surgir na Avenida Almirante Reis​. Um outro muito pertinente é a sua posição estratégica no cruzamento com a Rua Pascoal de Melo, que fecha o anel viário fundamental com as Avenidas Fontes Pereira de Melo, da Liberdade e Almirante Reis. Numa análise ao contexto construído, constata-se ainda que, pelo facto de o plano original traçado por Ressano Garcia não ter estabelecido volumetrias, o carácter da Avenida Almirante Reis​ assenta na diversidade de alturas a variar entre um a 14 pisos, geometria dos lotes, tipos e épocas de arquitectura. Por isso, esta é a localização certa para um novo espaço urbano de referência, com a introdução de um elemento de referência em altura, à semelhança do que encontramos no conjunto urbano Praça de Londres-Avenida de Roma-Alvalade, onde edifícios de 10 a 19 pisos assinalam cruzamentos e praças, naquele que é um dos bairros da cidade com melhor qualidade de vida.

Quanto ao impacto da sombra, a concentração de construção na vertical é muito mais eficaz. Como? A sombra – que roda ao longo do dia e do ano – concentra-se na projecção do edifício mais alto tornando-se menor no resto do conjunto. Além disso, as várias aberturas criadas no perímetro do quarteirão deixam passar e reflectem a luz. Em termos de ventilação urbana, absolutamente necessária nos meses quentes, tal como a sombra, este esquema é mais eficiente quando comparado com o quarteirão fechado. Além disso, as diversas zonas ajardinadas, que incluem a renovada Rua António Pedro, a praça e as coberturas dos edifícios, irão introduzir um ambiente fresco e natural, importantíssimo para melhorar a atmosfera actualmente muito árida e quente daquela zona.

Durante muito tempo acreditou-se que a cidade de baixa densidade seria a mais sustentável. Não podendo crescer dentro de si porque ficaria sem espaço público, esta cidade cresce para fora, consumindo vastos territórios e aumentando as distâncias a percorrer, os transportes motorizados, o investimento em infra-estruturas, o consumo energético e a poluição. Hoje concluiu-se o inverso, que a cidade mais sustentável do ponto de vista social, económico e ambiental é a cidade densa que, para ser mais eficaz, deve existir em zonas bem infra-estruturadas (rede viária, transportes públicos, energia, etc.), que é claramente o caso da Avenida Almirante Reis, que, entre outros aspectos, possui várias estações de metro. É isto que estão a fazer as grandes capitais europeias.

Sendo o debate sempre fundamental, porque é também através dele que as ideias e as sociedades evoluem, a polémica sempre existiu associada à mudança. Recorde-se o caso da construção do Centro Cultural de Belém ou da Avenida da Liberdade – onde existia o Passeio Público, para a qual uma Petição Pública reuniu milhares de assinaturas no século XIX. Isso acontece porque há opiniões diferentes, mas também pela insegurança face ao desconhecido, ou porque são matérias complexas que obrigam ao domínio de várias áreas de conhecimento. Nos casos citados, que se tornaram símbolos de Lisboa, hoje ninguém diria que motivaram tamanha oposição.

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