No FMM, Sona Jobarteh e JP Bimeni são nomes de heróis

Na primeira noite do Festival Músicas do Mundo, o público de Porto Covo mostrou-se fluente nos reportório da Gâmbia e do Rajastão. E descobrimos a soul do Burundi.

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JP Bimeni: entre muita soul e um pouco de funk (à maneira de James Brown) com o espanto de que tudo isto seja tão antigo, tão actual e tão incrivelmente honesto Mário Pires / FMM
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Heroína instantânea em Porto Covo, sem necessidade de buzz mediático ou de vídeos virais, Sona Jobarteh é protagonista, uma vez mais, desta fantasia que o FMM é fértil em criar Mário Pires / FMM

Jarabi. Ainda estamos no primeiro — talvez no segundo — tema a escutar-se na 21.ª edição do Festival Músicas do Mundo e já o povo amontoado em frente ao palco do Largo Marquês de Pombal, em Porto Covo, dá voz a um tema de Sona Jobarteh como se falasse mandinga desde o berço. É certo que se trata apenas de uma palavra, “jarabi” — o equivalente a amor na língua mais falada na Gâmbia —, mas é já sintomático de uma das mais belas marcas do FMM: a total disponibilidade para, em cada concerto, o público encurtar distâncias e fazer esse caminho até às culturas mais ou menos (des)conhecidas que tem pela frente.

Jarabi é um das canções mais sedutoras de Fasiya, o primeiro (e até agora único) álbum de Sona Jobarteh, virtuosa tocadora de kora, a mais nova da longa linhagem de uma família griot dedicada ao instrumento e a primeira mulher a profissionalizar-se neste labor. E é também uma canção tão entranhada na tradição griot quanto numa universalidade que dispensa tradutores especializados. Tanto assim que é impossível não nos perguntarmos que estranhas leis do universo (ou do mercado) são estas que impedem Jarabi de se escutar em todo o lado, com o mesmo grau de devoção que quaisquer três minutos cantados em inglês. Heroína instantânea em Porto Covo, sem necessidade de buzz mediático ou de vídeos virais, Sona Jobarteh é protagonista, uma vez mais, desta fantasia que o FMM é fértil em criar, convencendo-nos, com toda a justiça, de que a música pode ser só a força e a magia do momento, sem quaisquer outros factores externos que lhe subtraiam ou acrescentem força.

O mesmo se poderia dizer de JP Bimeni. Nascido no Burundi e emigrado para o País de Gales aos 16 anos, Bimeni coloca em palco a mais clássica soul, com o fervor herdado de Otis Redding, Marvin Gaye ou Al Green, e uma propriedade que ninguém se atreverá a questionar. Tudo parece irreal neste concerto: um grupo (Black Belts) formado em Londres por músicos espanhóis que se comportam como se fossem as bandas residentes dos anos de ouro da Motown ou da Stax, um cantor que fugiu do seu país com a eclosão da guerra civil e canta os temas obrigatórios da soul — o amor, a perda, a dignidade, a luta, a esperança, a sobrevivência — como se o seu Burundi e Detroit ou Memphis dos anos 60 fossem um só lugar, um reportório composto por clássicos que, só por um erro histórico, nunca o foram. Mas ouvimo-lo neste pêndulo desigual entre muita soul e um pouco de funk (à maneira de James Brown) com o espanto de que tudo isto seja tão antigo, tão actual e tão incrivelmente honesto. Aloe Blacc que se cuide.

Já depois da açoriana Ronda do Caminho instalar um baile popular na aldeia de Porto Covo, cantando sobre infâncias em que se bebia água das poças e se comia morangos no mato, e idades adultas em que se fazem juras de amor a garrafas de vinho, depois das suas demonstrações de uma folk de trejeitos britânicos (muito Pogues, muito Levellers) apostada em concentrar-se na alegria e na felicidade, e talvez por isso demasiado ligeira e passageira, chegariam do Rajastão os Barmer Boys.

E aquilo que os Barmer Boys fazem em palco é coisa dificilmente imaginável. Mangey Khan empresta uma voz milagrosa, que trepa pelos agudos como quem bebe copos de água, a belíssimas canções sufi carregadas de uma espiritualidade que não chocaria se fizesse levitar os três músicos indianos. Acompanha-se de um harmónio (que apenas amplia esta sessão hipnotizante) e das percussões de Rajak Khan que lhe dão o embalo certo. Só que depois há ainda Rais Khan, que começa por parecer apenas um tipo capaz das mais extraordinárias façanhas com um berimbau, mas logo se dedica ao beatboxing e passa a cuspir batidas de recorte hip-hop que saem da sua boca e não de maquinaria made in Japan. Pode parecer despropositado, mas não é. E passamos a acreditar que tudo aquilo que a voz de Mangey faz pela levitação, os ritmos de Rais fazem por baixar à terra, num embate entre celestial e terreno que não é um confronto, mas um equilíbrio de forças.

No final, tal como acontecera com Sona Jobarteh ao deixar o palco e o público continuar a entoar Gambia le ma, numa canção que sabemos celebrar o 50.º aniversário da independência da Gâmbia, também os Barmer Boys põem uma multidão a cantar uma frase quase tão impronunciável quanto irreproduzível, em mais um momento de comunhão de que só a música parece capaz. Às vezes, é pena que o mundo não se pareça mais com o FMM.

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