Obituário de um ministro e do programa de Estímulo ao Emprego Científico

A ciência não necessita de acréscimos de mão-de-obra barata e rotativa, eternamente pressionada pelo próximo concurso e pelos que se seguirão. A ciência necessita, sim, de um crescimento do investimento público que inclua a atribuição de um orçamento estrutural (via Orçamento do Estado).

Quando a ciência é notícia em Portugal, geralmente relatam-se progressos extraordinários. Em regra, os investigadores portugueses são apresentados na sua excepcionalidade, do seu contributo para o desenvolvimento de vacinas e de telescópios, à sua perícia no estudo dos processos migratórios ou da violência doméstica. Este panorama deve-se a um crescente investimento em actividades científicas em Portugal (apenas interrompido entre 2010 e 2015) que se traduziu num aumento do número de doutoramentos, artigos científicos e captação de financiamento internacional. Acontece que todo este crescimento foi construído tendo por base o trabalho realizado por uma massa crescente de investigadores, técnicos e gestores de ciência que consecutivamente ganharam concursos públicos internacionais para a atribuição de bolsas.

Se a primeira bolsa é muitas vezes considerada como um prémio, algo que os faz sentir “especiais”, trazendo a oportunidade de fazerem “mesmo aquilo de que gostam”, uma década ou duas mais tarde — de bolsas e bolsas consecutivas, eventualmente intercaladas por um breve contrato de trabalho a prazo — a leitura que fazem da situação já não é a mesma. Os “jovens investigadores” de ontem têm agora cerca de 40 ou 50 anos, filhos, trabalho invariavelmente intenso, bolsas a terminar ou terminadas e direitos sociais extremamente limitados (basta lembrar, por exemplo, o não acesso ao subsídio de desemprego), pois as bolsas, legalmente, não foram, nem nunca serão, contratos de trabalho.

Este cenário tem implicações, a um primeiro nível, no trabalho que é realizado. Quem se candidata continuamente a concursos deste tipo está encurralado numa corrida interminável a bolsas, breves contratos a prazo, projectos e mais projectos, e não encontra sequer o tempo suficiente para realizar adequadamente investigação científica, analisar os dados e os problemas, discuti-los com os pares e com a sociedade... em suma, reflectir. Consequentemente, este panorama tem implicações na produtividade de universidades, unidades de investigação e no sistema científico como um todo. Por fim, mas não de menor importância, este contexto tem implicações nas trajectórias de vida destas pessoas, nas suas aspirações e projectos, eternamente adiados na busca incessante de uma estabilidade que nunca chega.

Com esta situação em pano de fundo, o programa eleitoral do Partido Socialista de 2015 previa a progressiva substituição de bolsas de pós-doutoramento por contratos de trabalho, a prazo, mas mantendo, ainda assim, as bolsas como norma para os investigadores não doutorados. Ao longo desta legislatura, multiplicaram-se as declarações, tanto do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, como dos presidentes da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, afirmando e reafirmando o fim dos concursos individuais de bolsas de pós-doutoramento, que teriam tido a sua derradeira abertura em 2016. Foi também neste quadro que se realizou um conjunto de alterações legislativas que melhoraram a situação laboral de uma pequena franja dos trabalhadores doutorados — conferindo-lhe, finalmente, o verdadeiro estatuto de trabalhadores —, prevendo-se que se traduzam em cerca de 5387 contratos a prazo, até ao final desta legislatura.

Contudo, estas alterações legislativas e os contratos a prazo a elas associados não resolvem o problema de fundo associado à instabilidade laboral que corrói por dentro o sistema e as vidas de quem para ele trabalha.

Como se explica então que, apresentando este sector de actividade a segunda maior percentagem de trabalhadores com vínculos precários, tenha taxas de integração de docentes e investigadores na ordem dos 9% no Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos à Administração Pública (PREVPAP), quando nas outras carreiras é superior a 50%? Estes números resultam da deliberada rejeição da integração destes trabalhadores por parte do Governo e dos seus ministérios, em larga medida em sintonia com as instituições académicas e científicas que preferem, evidentemente, o sistema de bolsas e de trabalhadores jornaleiros.

Há uma semana, durante o Encontro Ciência 2019, o primeiro-ministro reconheceu que o PREVPAP foi insuficiente na regularização de docentes e investigadores, afirmando até, no que diz respeito ao emprego científico, que o “trabalho não está concluído”, sendo fundamental “criar novos mecanismos e fazer mais e melhor” — como se o Governo actual não tivesse tido um papel determinante para que a regularização do trabalho científico fosse insuficiente e ainda se encontrasse por concluir.

É, ainda assim, com maior espanto que somos confrontados com o actual projecto de programa eleitoral do Partido Socialista.

É, ainda assim, com espanto que somos confrontados com o actual projecto de programa eleitoral do Partido Socialista.

Ao arrepio de tudo o que se passou nesta legislatura e de tudo o que falta fazer ao nível da integração nas carreiras científicas, tal projecto não inclui uma só palavra relativa a programas de contratação nem de integração destes trabalhadores (quais serão os planos do Partido Socialista para o Programa de Estímulo ao Emprego Científico?). Mas, mais espantoso ainda, é verificar a intenção de ressuscitar os concursos anuais de bolsas individuais de pós-doutoramento, uma reviravolta impossível de compreender face às recentes afirmações do primeiro-ministro e da política científica da actual legislatura.

A ciência não necessita de acréscimos de mão-de-obra barata e rotativa, eternamente pressionada pelo próximo concurso e pelos que se seguirão. A ciência necessita, sim, de um crescimento do investimento público que inclua a atribuição de um orçamento estrutural (via Orçamento do Estado) para a concretização de contratos de trabalho a tempo indeterminado. Os trabalhadores científicos, que dia após dia contribuem para a ciência das manchetes da comunicação social, não aparentam ser uma prioridade para o Partido Socialista. E que ninguém acredite que há ciência realizada neste país sem a esmagadora contribuição dos trabalhadores com bolsa e demais vínculos precários. Enquanto sociedade, a mesma ciência que nos orgulha pelos seus resultados e pelo seu potencial transformador, envergonha-nos pela forma miserável como insiste em tratar aqueles que a produzem.

Associação de Bolseiros de Investigação Científica

LUPA - Associação de Pós-doutorados do Laboratório Associado para a Química Verde e da Unidade de Ciências Biomoleculares Aplicadas da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa

NInTec - Núcleo de Investigadores do Técnico

Núcleo de Bolseiros do Instituto Português do Mar e da Atmosfera

Núcleo de Bolseiros, Investigadores e Gestores de Ciência da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Precários da Universidade do Algarve

Sindicato dos Professores da Grande Lisboa

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