Racismo em contexto português

Em Portugal é esta tarefa que nos deveria motivar: promover a mobilidade e a integração social na perspectiva da desracialização.

A iniciativa do grupo parlamentar do PS sobre a discriminação positiva de minorias étnicas gerou um debate útil.

António Barreto lançou a primeira salva sobre o problema da reparação do colonialismo. Considerou absurdo qualquer sentimento de culpa relativo ao que se passou há 100 ou 200 anos. Advogou a reabilitação de bairros miseráveis por uma questão de igualdade, sem ter em conta quantos africanos. Considerou inúteis perguntas sobre racismo na sociedade portuguesa ou a pertinência de devolver objectos artísticos indevidamente trazidos das colónias.

Mas será assim tão fácil libertar-nos do passado colonial? Está demonstrado que o império português contribuiu com 20% do rendimento nacional entre 1500 e 1800. Portugal beneficiou economicamente com a experiência colonial, definida por tráfico de escravos (mais de quatro milhões transportados por portugueses para as Américas), uso compulsivo de trabalho nativo e exploração de recursos naturais. Reparação é uma questão política em aberto: não é fácil estimar montantes, formas de pagamento e mediadores. Mas existe um dever de compensação face a minorias de imigrantes e cidadãos oriundos das ex-colónias numa espiral de pobreza resultante de condições de exploração estruturais.

A devolução do património móvel trazido das ex-colónias não pode ser rejeitada como tonteria. Os povos dos novos países independentes têm direito ao seu património e à construção de uma memória coletiva baseada nos objetos das suas culturas. Existem normas internacionais sobre a legalidade de processos de aquisições para evitar a pilhagem que definiu o passado colonial. Os objectos que se encontram em museus deverão ser inventariados com a ajuda de pesquisadores dos novos países independentes para se encontrar uma base de identificação de origem e de aquisição. A devolução faz parte do direito internacional respeitante ao património.

Fátima Bonifácio declarou-se contra a discriminação positiva de minorias étnicas porque não se pode mudar por decreto a sociedade. Não? E a discriminação existente resultou de quê? O Estado colonial sempre actuou como um Estado racial, definindo condições de exploração, acesso e exclusão. A sociedade que temos foi moldada por sucessiva legislação ao longo de séculos. A utilização sistemática do sistema jurídico pelas elites para se reproduzirem é ignorada para bloquear correção de assimetrias.

Bonifácio atraiu todos os protestos quando declarou que africanos e ciganos (Roma) estão fora da civilização ocidental cristã, sendo os últimos inassimiláveis. O insulto é ampliado pela ignorância histórica sobre a expansão da religião cristã. A ideia que esses povos não descendem da Declaração Universal dos Direitos do Homem sugere uma visão genética de incapacidade, esquecendo a dificuldade de introdução desses direitos em Portugal durante mais de 200 anos.

A visão essencialista de Bonifácio traduz-se na ideia que a xenofobia e racismo são fenómenos universais, enquanto as minorias exóticas nunca se dissolverão na comunidade autóctona. Xenofobia em Portugal manifestou-se em relação aos pobres, raramente em relação aos ricos. Racismo não é universal; os preconceitos em relação a descendência étnica combinados com ação discriminatória são mobilizados em certos momentos históricos por grupos de interesses para a monopolização de recursos económicos e sociais. A fantasia da comunidade autóctona, já destruida por Marcel Detienne, torna-se patética num país com milhões de emigrantes. A ideia de minorias exóticas completa um quadro de linguagem do século XIX.

Ribeiro e Castro conseguiu dar um ar de modernidade ao falar de lusotropicalismo. Chamou a atenção para o arcaísmo da supremacia branca defendida por Bonifácio, ideologia anterior a Gilberto Freyre. O lusotropicalismo de Freyre, que sublinhava o mérito da mistura racial, nomeadamente na sociedade brasileira, representou um corte com o ideal de supremacia branca nos anos de 1930, embora escondesse a perpetuação de discriminação racial de populações de origem africana.

Outro interveniente neste debate, Gabriel Mithá Ribeiro, elogiou Bonifácio por defender a raça branca e condenou o paternalismo da esquerda por se intrometer na desigualdade social e na identidade racial. Na sua opinião, a intervenção da esquerda (que esquerda?) teria produzido miséria; declarou que a discriminação positiva apenas serviria para criar esquerdistas (com os praxistas nas universidades?). O anti-racismo da esquerda branca (mas há muitos anti-racistas de direita) é o estranho alvo de Gabriel Ribeiro, quando foram as revoltas de escravos dos séculos XVIII e XIX que suscitaram o problema político da escravatura e do racismo, culminando no movimento cívico dos afro-americanos dos anos de 1960. Olaudah Equiano, Frederick Douglass, William Dubois, Aimé Césaire e Franz Fanon são alguns dos autores de referência do movimento anti-racista, nenhum deles branco.

A visão compartimentada de grupos étnicos e sociais é a pedra angular do pensamento conservador. A sua separação é uma garantia de preservação de hierarquias. A suposta divisão entre brancos e não brancos é problemática, primeiro pela definição do que é branco, em seguida porque não acolhe diferentes dinâmicas de grupos e conflitos internos. A promoção individual entre populações subordinadas depende em larga medida do quadro de possibilidades definido pelas posições de grupo.

O problema da superioridade das raças foi abordado de forma elegante por João Miguel Tavares: declarou que os africanos nunca poderiam ter produzido um Shakespeare, não porque não tivessem inteligência para isso, mas porque não tinham instituições que o permitissem. Está bem informado sobre a new institutional economics, mas o problema histórico é mais profundo: qual o impacto em África do tráfico de escravos, para a América e para o Médio Oriente, que significou estagnação demográfica? E que dizer de períodos históricos em que o Médio Oriente foi decisivo, particularmente na transição para o neolítico, ou em que a China se mostrou mais desenvolvida do que a Europa, sobretudo durante a Idade Média e parte da Idade Moderna? Não estaremos agora numa fase de transição para um mundo em que o ‘Ocidente’ deixa de ter uma posição predominante? Não seria melhor falarmos em períodos com diferentes protagonistas e diferentes configurações institucionais?

Voltando ao problema do início deste artigo: a discriminação positiva pode ser um projecto interessante para estimular mobilidade e integração social. A meu ver, deveria ser alargada a outras minorias não étnicas mas sociais, de maneira a compreender populações afectadas pela pobreza e evitar a manipulação política das ‘raças’. Para o historiador Pap Ndiaye, que tem insistido no reconhecimento da condição negra em França, a desracialização é importante. Diria que em Portugal é esta tarefa que nos deveria motivar, promover a mobilidade e a integração social na perspectiva da desracialização. Autor de Racismos das cruzadas ao século XX (Lisboa: Círculo de Leitores, 2015)

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Ler 19 comentários