A democracia liberal não está obsoleta

O liberalismo é pluralista e democrático. E, portanto, incompatível com o modelo autocrático de Putin.

Há umas semanas, na véspera da cimeira dos G20, Putin deu uma entrevista ao Financial Times. Teve grande repercussão internacional, mas quase nenhuma em Portugal. Putin sabe que está fora do combate entre os dois grandes pela liderança mundial. Ainda assim, quis parecer grande e entrar no único combate que pode liderar: o combate ideológico. Entre as democracias liberais e as autocracias iliberais. Mas, afinal, o que disse Putin? Que a ideia liberal está obsoleta. E que o liberalismo é uma filosofia arcaica que, basicamente, abre as fronteiras e promove o politicamente correcto. Isto é, que recebe os imigrantes e protege as minorias. Tudo isto, claro, contra os interesses do povo. Nós, o povo, contra eles, os imigrantes que vêm de fora, e as minorias que estão cá dentro. 

Um conhecido historiador russo dizia que a história da Rússia se caracteriza pela importação cíclica das modas ideológicas ocidentais para as levar, depois, ao último extremo. Foi assim com o absolutismo brutal em se que transformou o despotismo iluminado durante o império czarista. Foi assim com o totalitarismo estalinista em que se tornou o marxismo durante o império soviético. E agora não é diferente. Do que se trata, hoje, na Rússia de Putin não é mais nem menos do que a versão euroasiática do nativismo, da autocracia e do populismo de extrema-direita que cresce no ocidente. E uma vez mais a caminho do extremo: Putin quer ser o líder desse combate ideológico, dessa frente global contra a democracia liberal e quer que a Rússia seja o modelo alternativo. Porquê? Porque é a única área em que pode liderar. E, sobretudo, porque o modelo autoritário e iliberal é o único que pode legitimar a sua política interna, mas também a sua política internacional.

Putin sabe bem que a democracia liberal é muito mais que fronteiras abertas e politicamente correcto. Sabe que significa eleições livres e justas, separação de poderes e Estado de direito. Que implica liberdade de expressão, imprensa livre e decisões baseadas em factos, que podem ser livremente contestadas. Ou seja, o liberalismo é pluralista e democrático. E, portanto, incompatível com o modelo monista e autocrático que é o seu. Incompatível com eleições não competitivas e concentração de poderes. Atropelos ao Estado de direito e à liberdade de expressão. Incompatível com a perseguição de dissidentes e a existência de presos políticos. Incompatível com um sistema em que os factos valem menos que a propaganda e em que a força vale mais do que a lei.

Mas se isto é evidente no que toca à política interna, o mesmo não sucede com a política externa. E, no entanto, mesmo aí, só o iliberalismo feroz de Putin pode explicar a sua acção internacional: a interferência nos processos eleitorais na Europa e nos Estados Unidos para favorecer Trump ou o “Brexit”, através de campanhas insidiosas de fake news; o financiamento dos partidos populistas de extrema-direita com quem tem convergência ideológica na Europa; a estratégia deliberada de erosão do vínculo transatlântico e divisão interna da União Europeia; o apoio declarado aos ditadores por esse mundo fora, de Maduro na Venezuela a Assad na Síria; e, finalmente, mais importante que tudo, a lógica da guerra, sistemática, desde que chegou ao poder: da Chechénia à Geórgia, da Ucrânia à Síria. Estas guerras e o cortejo de atrocidades que lhes estão associadas não são mais que a tradução internacional do anti-liberalismo doméstico.

E é por isso que este combate ideológico é importante. Porque ele tem consequências. Porque está em causa a democracia e a segurança internacional. E é por isso que os defensores da democracia liberal não podem deixar de o travar. Na tradição liberal houve sempre dois liberalismos: um essencialmente económico, centrado na propriedade e nos mecanismos do mercado; outro essencialmente político, centrado nos valores da liberdade e da dignidade humana. O primeiro, preocupado com o interesse individual, o segundo, com o bem comum. Coexistiram em conflito, mas sempre em equilíbrio. A globalização rompeu com esse equilíbrio. Cresceram as desigualdades económicas e os medos identitários. O interesse privado prevaleceu sobre o bem comum. Ora, é precisamente esse equilíbrio que é preciso restaurar. E hoje isso significa regular a globalização e reduzir as desigualdades; encontrar o balanço certo entre a hospitalidade e o realismo na gestão das migrações.

Não, a democracia liberal não está obsoleta. Continua a ser o regime dos países mais prósperos e mais livres. Mas enfrenta novos desafios e precisa de ser reinventada.

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