O voto de hoje: desdramatizar a hora europeia

Não vejo numa possível reprovação um golpe na credibilidade ou na solidez da União. Vejo apenas e só, e uma outra vez, a democracia europeia a funcionar.

1. Hoje à tarde, em Estrasburgo, terá lugar o voto de aprovação ou rejeição da Presidente da Comissão Europeia nomeada pelo Conselho Europeu (CE). Trata-se de um dos mais relevantes momentos da vida política europeia. Durante a manhã, Ursula von der Leyen faz o seu discurso e responde às perguntas dos deputados. À tarde, pelas 18 horas locais, procede-se à votação. O desfecho deste voto é totalmente incerto e é bem possível que dependa de algumas decisões de última hora, marcadas pelo seu desempenho no hemiciclo do Parlamento. O discurso, os compromissos que assuma, as garantias que der não são indiferentes para o resultado final. Este momento político é determinante; esta decisão é importantíssima. E ainda assim, não vejo motivos sérios para a dramatização que tem vindo a ser feita de ambos os lados da barricada. Atenta a incerteza e a imprevisibilidade do resultado, até compreendo esses motivos; mas julgo que, qualquer que seja a decisão, ela inscreve-se no jogo democrático da União – ou, como soe dizer-se, na “normalidade democrática” – e não deve ser encarada como geradora de uma crise ou de um impasse de grande proporção.

2. Se a nomeação do CE for aprovada, são muitos os que consideram que ela representa uma capitulação do PE e que deste modo se vibrou um rude e fundo golpe na “democratização” da UE. Pese embora, no espaço público português, esta pareça ser a visão maioritária, a verdade é que uma eventual aprovação de Von der Leyen não tem nem deve ser lida assim. Com efeito, espalhou-se a ideia de que, pelo menos no actual arranjo institucional, só o sistema do Sptizenkandidat tem pergaminhos democráticos. Trata-se de uma ideia errada. A prática de, em eleições parlamentares, cada partido apresentar o seu candidato a chefe do executivo é comum a grande parte das democracias parlamentares; comum e salutar – acrescente-se. Mas, em nenhuma delas, essa prática tem valor vinculativo. São inúmeros os exemplos de países e situações em que não é o candidato do partido vencedor que acaba na posição de chefe do Governo ou, mesmo, em que não é nenhum dos candidatos apresentados (provenientes do segundo ou do terceiro partido). A apresentação destes candidatos é, nas democracias nacionais, uma prática informal, quando muito, uma praxe constitucional, com enorme valor político, mas sem efeito vinculante ou compulsório. Basta olhar para a mais parlamentar das democracias ocidentais – o Reino Unido – para ver que chegaram ao posto de primeiro-ministro, repetidamente, personalidades que nunca foram “candidatas” ao cargo em eleições prévias. Assim aconteceu com John Major (1990), Gordon Brown (2007), Theresa May (2016) e vai acontecer com Boris Johnson ou Jeremy Hunt (2019). Ninguém se atreve a acusar o sistema político britânico de ser por isso antidemocrático.

No caso da UE, sucede até, como aqui já se explicou, que o sistema não é parlamentar; assemelhando-se mais a um sistema de tipo semipresidencial em que o CE desempenha as funções de “presidente colegial” (vem a ser um colégio presidencial). O gabinete executivo da UE necessita assim de uma dupla legitimidade – a do Parlamento, mas também a do CE. O Conselho é um órgão tão democrático como o Parlamento: um representa as democracias nacionais – como é mister numa união de Estados; o outro representa os povos europeus (a democracia europeia na sua indivisibilidade). Tal como acontece nos sistemas de governo semipresidenciais à escala nacional, se intercede fragmentação partidária e não há maiorias claras, a praxe do Spitzenkandidat dificilmente funciona e o papel do Presidente avulta. Num quadro de fragmentação parlamentar e de necessidade de entendimentos de mais de dois partidos, é natural que o CE tenha um papel mais interventivo do que teria diante de uma maioria clara ou fácil de formar.

Em suma, a ocorrer a eleição de Ursula von der Leyen não está em causa a democracia ou até a “democratização” europeia, nem a fragilização do PE. Está apenas em jogo o normal devir político de uma democracia em que, em função dos balanços eleitorais, certas instituições ganham mais ou menos peso relativo.

3. Se a nomeada pelo CE vier a ser rejeitada pelo Parlamento, também não há razões para falar em crise grave ou em impasse institucional. Se não há maiorias claras e o CE – para resolver as suas próprias desavenças internas –arroja avançar um perfil que não tem currículo parlamentar e europeu forte, joga por sua conta e risco. As probabilidades de não obter uma aprovação parlamentar tornam-se bem mais elevadas e o CE tem ciência disso. A não aprovação da personalidade designada é uma prerrogativa parlamentar tão legítima quanto a aprovação. É natural, desta feita, que na tensão interinstitucional o PE queira afirmar a sua primazia. E que o faça, não por birra, mas porque considera que a designada carece de qualidades, tem más propostas ou a sua escolha não traduz o equilíbrio parlamentar. Na afirmação dessa prerrogativa não faz outra coisa senão seguir os passos do parlamento britânico (séculos XVII e XVIII) que, esticando os limites dos seus poderes, foi ganhando um crescente relevo constitucional.

São muitos os que se afadigam em ver numa rejeição uma crise grave ou um insuportável impasse. Mas basta olhar para os recentíssimos e intrincadíssimos processos de formação do Governo na Alemanha, na Itália, na Espanha ou na Suécia para perceber que um revés europeu ainda estaria longe do desgaste dessas sagas políticas. Uma reprovação de Ursula von der Leyen, por mais inconveniente que seja, não representa uma falência da UE e de Bruxelas. Constituiria, sem dúvida, um importante precedente político e constitucional, mas sem a magnitude de um terramoto. Votarei a favor da candidata e julgo que a UE ganha com a sua eleição. Em todo o caso, não vejo numa possível reprovação um golpe na credibilidade ou na solidez da União. Vejo apenas e só, e uma outra vez, a democracia europeia a funcionar.

           

SIM. Selecção nacional de hóquei em patins. A vitória no campeonato mundial é justa e grande motivo de orgulho. É um enorme incentivo para que se volte a dar ao hóquei o lugar que lhe pertence.

NÃO. Lei de Bases da Saúde. O acordo para a aprovar, obtido em desespero, branqueia o fracasso gigantesco deste governo na área da saúde. Os males da saúde não se curam com leis.

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