As quotas são democráticas e necessárias, como demonstra a história e ciência

A aparente injustiça – “discriminação positiva” – é para compensar a injustiça histórica que precisamente levou a ela – a “discriminação negativa”.

Tenho assistido nestes dias em Portugal, onde vim precisamente dar palestras sobre a história do racismo, à discussão sobre as quotas ditas “étnico-raciais” para as universidades – o que, por si só, é um termo incorrecto, dado que biologicamente não existem diferentes raças humanas, como declarado oficialmente pela Associação Americana de Antropólogos Físicos (AAPA). Não me espanta que haja tanta desinformação sobre o tema, pois a grande maioria dos artigos que saem sobre isso são basicamente opiniões pessoais, ou histórias mundanas, não se baseando em factos científicos e históricos concretos. Se o fizessem, saberiam que uma visão idealizada do nosso planeta, em que todos nascemos com as mesmas condições à partida – um pensamento apetecível, claro, para os que dominam, pois perpetua o status quo – é totalmente arrasada pelos estudos científicos feitos sobre este assunto.

Para dar um exemplo, entre milhares que poderiam ser dados aqui: um conhecido estudo de 2012 do Projecto de Mobilidade Económico da Pew mostrou que nos EUA só 4% das pessoas criadas em famílias “bottom 20%” conseguiu subir ao “top 20%”, concluindo que “estruturas de oportunidade criam e determinam o futuro das gerações”: “A nossa posição social é determinada onde nascemos e crescemos, e isto tem a ver com o modo e contexto como os nossos pais nasceram e cresceram, e seus antecedentes.”

Para dar outro exemplo, português, um estudo recente da Fundação Belmiro de Azevedo mostrou que “a expansão do ensino universitário não conseguiu diminuir as diferenças de acesso entre estudantes com níveis socioeconómicos distintos”: “Quem não tem possibilidade de ir para um colégio privado ou ter explicações não consegue superar essa dificuldade [e atingir a médias exigidas]. Por exemplo, mais de 70% dos estudantes de medicina são filhos de pais que concluíram o ensino superior.” Claro que alguém racista poderia dizer que isto mostra que é precisamente porque essas famílias são “superiores” desde há várias gerações, o que é tão ridículo como dizer que o facto de o príncipe William vir a ser muito provavelmente o rei no Reino Unido mostra que a sua família é “superior”: simplesmente, deu-se o caso que ele foi o primeiro filho do príncipe Charles e da princesa Diana.

Então, se está demonstrado cientificamente que são quase sempre os mesmos que podem comer do bolo – ou melhor, para os exemplos teóricos que vou dar, estar dentro do barco de pesca –, como se pode mudar isso, para que estas desigualdades não se perpetuem? O sistema de quotas para entrar na universidade – ou de bolsas para poder pagá-la, sobretudo em países como os EUA, onde são tão caras em geral – é precisamente uma das melhores maneiras para o conseguir.

Alguns disseram, como José Pacheco Pereira, que os sistemas de quotas são como a “assistência social”, ou seja, que perpetuariam o ciclo de pobreza por apenas dar um peixe, em vez de ensinar a pescar. Surpreende-me, pois admiro em muitas coisas este autor: as quotas, tal como as bolsas, são totalmente o oposto, são precisamente para deixar certas comunidades/minorias que nunca puderam fazer parte do bolo – ou melhor, entrar no barco de pesca –, sobretudo as suas famílias, poderem pescar por si mesmos. É para se entrar na universidade – um dos barcos principais de pesca – e aí, com o seu mérito e resultados alcançados, poderem triunfar e construírem vidas em que os seus filhos poderão já nascer num contexto não tão desfavorável, para no futuro, em algumas gerações, idealmente a percentagem dessas comunidades que fazem parte do barco de pesca seja maior do que hoje e de acordo com a percentagem real que essas comunidades ocupam na população total.

E estas ideias não têm só a ver com esquerda/direita; nos EUA a discriminação positiva é feita em quase todos os quadrantes e instituições, como posso atestar no exemplo concreto da Universidade de Howard, de que me orgulho de ser professor, a primeira universidade para afro-americanos nos EUA, e que oferece precisamente bolsas a pessoas de famílias afro-americanas desfavorecidas, sendo uma das instituições que mais contribui para acabar com o ciclo de pobreza da população afro-americana. Isto não são opiniões, ou discussões politicas: são dados científicos, estatísticas. Por isso mesmo, este é um sistema de discriminação positiva, temporal, para equilibrar os séculos de discriminação negativa, para que se chegue a um equilíbrio e, idealmente, não serem necessárias mais quotas. Não seriam necessárias se os que dominam hoje não tivessem começado eles a discriminação negativa.

Isso leva-nos a falar da questão “moral”. O argumento de que não é “moral” para um aluno A, digamos “branco”, não entrar numa universidade tendo tido melhores notas do que um aluno B que não seja “branco” é um falso argumento. Em primeiro lugar, as pessoas que hoje se mostram tão ressentidas com estas “injustiças”, como, por exemplo Fátima Bonifácio não disseram nada sobre os momentos quando havia a injustiça da “quota 100%” para os “brancos”, como aconteceu durante séculos, e até muito recentemente em países como os EUA ou a África do Sul. Uma parte da classe dominante – a mais reaccionária, pois a escravatura foi em grande parte abolida por actores liberais dessa mesma classe dominante, é preciso fazer menção disso – só começa a falar de “injustiças” morais quando estas parecem afectar essa própria classe: antes disso, estavam bem caladinhos. Relacionado com isso está o tema das “quotas não serem democráticas”, como sugeriu Pacheco Pereira. Precisamente, os EUA impunham “quotas 100%” para “brancos” em casas-de-banho ou universidades há apenas umas décadas, já depois da Segunda Guerra Mundial, e nesse momento não se afirmava que esse país não fosse “democrático”. Tende-se a romantizar muito a democracia, esquecendo-se que a democracia nasceu na Grécia, onde a escravatura era tão generalizada – e cruel – como mais tarde o foi no Sul dos EUA, como recentemente escreveu James Scott no livro Against the Grain. Da mesma forma, as mesmas pessoas que defendem que os EUA são hoje um país democrático, têm de aceitar o facto de que a discriminação positiva é feita a todos os níveis nesse país, não o tornando antidemocrático – bem pelo contrário, a discriminação positiva mostra a força de uma democracia

Claramente, os países menos democráticos do planeta têm em geral muito menos – muitos deles nenhuns – projectos de discriminação positiva.

Mais importante: esse argumento actual sobre a injustiça para esse aluno A “branco” também se aplica ao aluno B “não branco”, porque ele não tem culpa de ser filho de pais de uma comunidade desfavorecida. Se tivesse tido os pais do aluno A, sobretudo se fossem de classe social alta, era bem provável que pudesse ter tido melhores notas, como se demonstra empiricamente com os estudos científicos que referi em cima. Então, agora, quem é injustiçado?

No fundo, a aparente injustiça – “discriminação positiva” – é para compensar a injustiça histórica que precisamente levou a ela – a “discriminação negativa”. Sem esta última, não teríamos de fazer a outra agora. Mas como a “discriminação negativa” foi feita, os estudos científicos e a história mostram-nos que uma das poucas maneiras eficientes para a anular é a implementação de sistemas temporários de bolsas e quotas dentro do quadro da “discriminação positiva”. Só esperemos que as barreiras de exclusão socioeconómicas não sejam tão fortes, e as reacções adversas não sejam tão mal-informadas, para que isto seja algo realmente temporário que possa ser feito dentro de um tempo relativamente curto. Esperemos que mais curto do que os vários séculos que perdurou a escravatura europeia e colonialismo, a sua discriminação negativa e as “quotas 100%” para a classe dominante/“branca”.

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