Deixar o telemóvel fora do quarto

As pessoas que não respondem a mensagens são todas estúpidas, miseráveis e asquerosas e todos já fomos estúpidos, miseráveis e asquerosos. No século XX, fingíamos que não víamos uma pessoa – e isso podia ser bastante humilhante para a vítima mas ainda assim obrigava o perpretador do acto ignóbil a um esforço

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Vasco Gargalo
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— Lembras-te do Eduardo?

A Vanessa telefonou-me precisamente às 8 da manhã. A maioria das pessoas, eu sei, são felizes e competentíssimas às 8 da manhã. Genericamente infeliz e incompetente por essas horas, bocejei e consegui emitir um advérbio, aquela partícula negativa oposta à partícula “sim”:

— Não.

— Como é que não te lembras do Eduardo?

— Neste momento nem me lembro onde moro, mas acho que é nesta cozinha.

— Pá, mas do Eduardo devias lembrar-te. Ele foi um homem importante na minha vida.

— Foram tantos…

— Ah, agora és moralista? Estás velha, pá!

— Velha és tu!

Nada como uma discussãozinha com o aumento gradual da intensidade sonora para disparar a adrenalina, a dopamina e aquelas coisas que, pelo menos, acordam.

Acordada à bruta, tentei perceber quem era o Eduardo amigo da Vanessa do qual não me lembrava, apesar de ser suposto que as amigas se lembrem de tudo. Em certos dias, pelo menos.

— Eu conheci o Eduardo há muitos anos. Sempre fomos amigos. Tivemos uma coisa assim tipo, como é que se diz agora, um “fling”.

— Queres dizer uma cena?

Agora uma cena tinha passado a ser um “fling”. Nem havia “flings” quando a Vanessa conheceu o Eduardo. Os “flings” vieram depois. As pessoas tinham cenas, casos, “coisas”, curtes…

— Sim, uma cena. Curtimos uma vez ou outra, mas ficámos muito amigos.

— Isso é bom.

— Era giro falar com ele. A verdade é que não falava há muito tempo e como esta noite tive uma insónia lembrei-lhe de lhe mandar uma mensagem no Messenger. E era uma mensagem queridinha.

(Sabem porque é que os especialistas em combate ao burnout, ansiedade e inclusivamente tristeza mandam as pessoas deixarem os telemóveis fora dos quartos? Por isto)

— E então o que é que aconteceu?, perguntei.

— O gajo foi um bocado estúpido.

— Estúpido porquê? Não respondeu?

As pessoas que não respondem a mensagens são todas estúpidas, miseráveis e asquerosas e todos já fomos estúpidos, miseráveis e asquerosos. No século XX, fingíamos que não víamos uma pessoa – e isso podia ser bastante humilhante para a vítima mas ainda assim obrigava o perpretador do acto ignóbil a um esforço físico, a um q.b. de concentração, algum sentido de orientação, mínimo controle de movimentos. Agora a humilhação não custa nada. Ignora-se e pronto – mesmo depois de a vítima ser informada que o seu texto foi “lido”, “visto” e todas as partículas informativas que alguns de nós dispensávamos – isto se na verdade quiséssemos.

Afinal o Eduardo até tinha respondido.

— Eu mando uma mensagem queridinha, daquelas a querer recuperar o contacto, estás a ver? Um clássico, mas estava com insónias. E sabes o que ele me pergunta? Se eu ainda fumo!!!!! Se não quero mesmo deixar de fumar! Que devo deixar de fumar! Que a mulher dele foi à bruxa e deixou de fumar. Que o filho não sei o quê mas também deixou de fumar. Já imaginaste isto? Já viste o sacana? Nunca mais lhe falo.

— Já lhe devias ter deixado de falar há muito tempo, não devias?

— Desde quando tens autoridade moral para me dar sermões? Agora que eu esperava de ti apoio é assim que me respondes?

— Vanessa, já não estamos na Faculdade.

— Quero lá saber!

E desligou o telefone.

Eu conheci a Vanessa na Faculdade. A ideia de que as décadas passam e algumas coisas, mesmo que ligeiramente irritantes, ficam na mesma, conforta-me quase tanto como o terceiro café da manhã.

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