Do que nos resta de humanidade

Estes são tempos em que olhamos sem ver, ouvimos sem escutar, passamos sem sentir. E, nesta indiferença, enchemo-nos de nós próprios, numa voragem do mais novo, do mais moderno, do mais belo...

Estes são os tempos da indiferença. Da indiferença da banalidade. Da indiferença da superficialidade. Da indiferença do preconceito.

Os tempos em que olhamos sem ver, ouvimos sem escutar, passamos sem sentir, rotulamos com o julgamento na ponta da língua, respaldados pelo facilitismo das verdades de digestão fácil.

E, nesta indiferença, enchemo-nos de nós próprios, numa voragem do mais novo, do mais moderno, do mais belo, do mais... Desses “mais” que, afinal, nunca chegam, pela simples razão de que nunca os deixamos chegar, permanentemente insatisfeitos, ansiosos, apressados.

Os tempos da indiferença, em que a morte, a indignidade e o sofrimento são consumidos de relance, ao jantar e entre duas garfadas, pelos nossos olhos distraídos e (pre)ocupados com a vida. Com a nossa própria vida.

Os tempos em que a miséria alheia é, apenas, uma espécie de incómodo. O incómodo que afugentamos, com mãos impacientes, enquanto almoçamos na esplanada do bairro chique. O incómodo que enxotamos, a gritos e pontas de pés, para que os cartões que são cama e os cobertores que são casa não estraguem a estética modernista da portada de um qualquer edifício, no centro da cidade.

Os tempos em que nos vamos fechando em grupos de afinidades electivas e, com isso, vamos negando aquilo que de melhor nos poderia ter trazido o progresso: o encurtamento das distâncias e, daí, o convívio com o (culturalmente) longínquo.

Os tempos do fútil e da exaltação da ignorância mais primeva, em que a “fama” advém da participação em reality shows, ou da difusão de idiotices pueris num qualquer canal de YouTube, e em que a televisão se converteu no grande tribunal, que se substitui aos outros tribunais (os legítimos) que, derrotados pela burocracia, se afogam na sua própria inércia.

E este grande tribunal televisivo é rápido no julgamento que, geralmente, sentencia uma espécie de linchamento popular, figurado é certo, mas igualmente suculento, para os justiceiros de sofá.

Os tempos do efémero: na moda, nas ideias e no amor, em que o hoje já é obsoleto, na busca permanente do amanhã.

A efemeridade onde vive o desnorte, com pais que não sabem como hão-de sê-lo e filhos que procuram, em desespero, referências parentais. Com vidas que se desorganizam, ao mesmo tempo que se buscam as fórmulas mágicas dos livros de auto-ajuda.

Os tempos em que queremos ser jovens para sempre, magros para sempre, belos para sempre, felizes para sempre, justamente quando, e como nunca antes, nada pode ser para sempre!

Os tempos do isolamento que nenhuma rede social pode colmatar, porque é, afinal, o isolamento face a nós mesmos, o isolamento daquilo que somos, quando se apagam as luzes e se desligam as selfies. O isolamento da plateia vazia, depois da queda do pano.

Por isso, muito mais do que a miséria que, incomodados, julgamos enxotar, aquilo que verdadeiramente estamos a afastar, nos gestos impacientes das mãos e na irritação das pontas de pés, é aquilo que nos resta de humanidade. Dessa humanidade que vê, quando olha. Que escuta, quando ouve. Que sente, quando passa. E que respeita, quando distingue.

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