Esses patifes da província (ou do direito à política)

Entre uns que se exaltam contra a paisagem, a bem da manutenção do poder metrocêntrico, e os outros que a partir da província, é bom de dizer, apenas vêem na descentralização envelopes financeiros mais chorudos, esvazia-se a verdadeira oportunidade.

Atravesso este país que realmente desconheço. Vou muito para além da Estrada Nacional 2, uma dorsal sinuosa e esburacada, e faço por isso. Cubro-lhe o interior, em jeito de promessa, pelo menos de Trás-os-Montes às Beiras. Nada me move contra o além Tejo. Guardo a planície para muito depois, mas essa revela-se uma decisão acertada.

Nessa altura, em 2011, empenho-me primeiro pelos socalcos durienses acima, em constante deslumbramento. Para lá do troço da Linha do Tua, resistindo na eterna expectativa de ser submerso, pressinto um aperto no coração com o mesmo vigor com que sou comprimido pelas serranias. Entre horizontes ora recortados pelo Marão, ora tangidos pela Serra da Estrela, componho a definição inteira da solidão. Uma solidão sem margens, sem alternativa, por vezes desconfiando-se de que não terá fim. E é uma solidão bem portuguesa, pelo menos até onde a fronteira permite.

Examino essa contracapa do país, movido pela curiosidade de quem nasceu numa terra igualmente remota. Em 2011, na minha viagem a Portugal, reconheci a minha ingenuidade. O isolamento do interior português, demasiado firme e circunspecto, era em tudo distinto da minha imaginação, num dia favorável. Para mim, açoriano, a solidão da ilha vivia-se toda e de uma só vez, não era um plano aberto que devolvia uma continuidade e o seu reflexo. Além da natureza diversa da solidão insular, assumia também a minha sorte: embora vivendo na periferia, tivera a fortuna de toda uma geração ter reclamado uma forma de governo próprio, décadas antes. A divisa que perdurou, um paroxismo em conluio desastrado com um fim trágico, ainda hoje insiste (e comove): antes morrer livres do que em paz sujeitos.

Pergunto-me, muitas vezes, o que seria desse país interior e mais próximo do seu coração do que as ilhas, se Lisboa tivesse alinhado por outra solução político-administrativa em tempos democráticos. Seria o mesmo pelo qual vagueei, desconhecendo-o a cada lanço de estrada, há quase dez anos?

Penso ainda mais nisso agora, ao inteirar-me das reacções a propósito de múltiplas investigações a câmaras municipais, Barcelos, Santo Tirso ou Pedrógão Grande entre elas. A pretexto dessas investigações, reemerge a possibilidade de inibir a distribuição de poderes do Estado. Apontam-se baterias aos patifes da província, essa horda de malfeitores, gente dedicada a distribuir lugares segundo conveniências partidárias, a controlar o emprego público a partir das câmaras, a gerir fluxos de financiamento consoante os fios que entretecem teias de interesses. Seria o argumento sólido, não tivesse a última década vindo provar como o centro está, afinal, tão exposto a esses desvios como a aldeia, nas suas relações com os interesses económicos, a banca e até algumas famílias.

Para resolver essas vulnerabilidades do Estado, a mesma clique de comentadores vislumbra, e bem, a via judicial. No caso da província, triunfa a parcialidade. Consumadas as acusações, e antes sequer de se conhecerem as sentenças, a justiça já é dada como insuficiente. Talvez por serem poucos e se conhecerem todos uns aos outros, aliás bem ao contrário do que acontece na capital, a elite considera amiúde que o melhor, o mais recomendável, a única solução, é renegar o direito à política. E se de início essa vontade é simples reiteração, perpassando em artigos de opinião e numa ou noutra entrevista, aguarda-se que avance a todo o pano o decreto: acabe-se, de uma vez por todas, com a descentralização.

Entre uns que se exaltam contra a paisagem, a bem da manutenção do poder metrocêntrico, e os outros que a partir da província, é bom de dizer, apenas vêem na descentralização envelopes financeiros mais chorudos, esvazia-se a verdadeira oportunidade. E essa oportunidade consistiria na existência de um poder intermédio, de ligação e implicação, com as atribuições certas e uma fiscalização ágil, para oferecer às populações um verdadeiro sentido de envolvimento nas políticas. Quisessem os parlamentos nacionais e até o Parlamento Europeu reflectir uma política georreferenciada, emanando do lugar, e, de facto, um contributo estaria a ser dado para contrariar a sensação de perda de controlo do eleitor, no momento decisivo. Mas enfim, retorno à ingenuidade com que contemplo uma paisagem rugosa e que não compreendo, já lá vão oito anos. E concluo, pelos outros, os que perduram no íntimo do país: o mais certo é continuarem a viver assim, condenados a uma justiça ocasional e tolhidos no seu ímpeto político, mas em paz sujeitos.

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