A bofetada do FMI à campeã europeia das exportações

São mais do que horas de o governo alemão se consciencializar de que o seu papel é a representação efectiva dos cidadãos pelos quais foi eleito. Caso contrário, as perigosas tendências de uma mudança populista para a extrema-direita irão intensificar-se.

O FMI acaba de apresentar o seu relatório sobre a Alemanha. A instituição, conhecida pelas suas políticas liberais, chega à impressionante conclusão de que a Alemanha, com os seus volumosos excedentes de exportação, não só produz desequilíbrios massivos na zona do euro, como também aumenta os desequilíbrios sociais na própria Alemanha. Milhões de alemães pouco beneficiaram do aumento das exportações, enquanto os crescentes excedentes alemães das últimas duas décadas foram acompanhados por um aumento acentuado dos rendimentos de topo na Alemanha, constata o FMI. Actualmente, os 10% mais ricos possuem 60% dos activos líquidos, sendo este o valor mais elevado na zona do euro.

O conceituado jornal Süddeutsche Zeitung vê nesta conclusão uma crítica invulgarmente aberta ao governo alemão.

Significa isto que até mesmo o FMI vem fornecer dados e factos que dão razão àqueles que, de longa data, criticam a actual globalização, afirmando que ela está a aumentar a desigualdade social.

Ignorando as consequências políticas deste facto, nomeadamente, a nível interno, a perda maciça de votos por parte dos partidos do actual governo e o aumento dos populistas, bem como as críticas internacionais à excessiva orientação para a exportação, o governo alemão continua obstinadamente agarrado ao mesmo modelo económico das últimas décadas.

Com a globalização e o comércio livre como mantra e acicatado pelo lobby das grandes indústrias automóvel, química, de maquinaria e de armamento, o governo prossegue numa marcha contínua de adaptação às condições internacionais que conduz à redução dos direitos sociais e laborais e das normas ambientais, que eram apanágio da economia social de mercado.

Nos casos em que outros países europeus, como a França, decidiram, mesmo em iniciativa unilateral, introduzir regulamentos ou leis fiscais para os gigantes da Internet ou proibir agrotóxicos, o governo alemão sempre funcionou como poderoso travão, argumentando que a aplicação desse tipo de iniciativas só faria sentido a nível global ou, pelo menos, a nível europeu. Ora, na realidade, trata-se apenas de proteger o modelo económico alemão e os seus poderosos actores, cuja influência sobre o governo parece ser ilimitada, seja no que concerne ao abandono progressivo do carvão, ao cumprimento das metas climáticas ou ao estabelecimento de níveis-limite mais exigentes para as partículas finas no ar. O que levou já a vários processos contra o governo alemão por parte da UE, devido à violação de normas estabelecidas a nível europeu.

No estudo agora apresentado, os macroeconomistas do FMI apresentam dados e factos que não agradarão à já frágil “grande coligação” de Berlim.

Se não houver uma reorientação dos incentivos para um maior investimento interno nas áreas mais urgentes, como as infra-estruturas de transportes, a digitalização, a habitação a preços acessíveis, a Educação e, por outro lado, um aumento dos salários mais baixos acompanhado de reduções fiscais para rendimentos baixos e aumentos nos sectores imobiliário e sucessório, é mais que provável que a insatisfação social continue a aumentar.

São mais do que horas de o governo alemão se consciencializar de que o seu papel é a representação efectiva dos cidadãos pelos quais foi eleito. Caso contrário, as perigosas tendências de uma mudança populista para a (extrema-)direita irão intensificar-se, não porque os cidadãos dela esperem melhores políticas, mas em protesto por não se sentirem representados pelo actual governo.

A proposta de Ursula von der Leyen como presidente da Comissão Europeia, com o apoio de parceiros importantes como a França, prova que os sinais dos tempos também ainda não foram reconhecidos a nível europeu e que se continua a acreditar que os cidadãos, e em especial os jovens, se resignarão eternamente a aceitar uma política de bastidores anacrónica e regida por interesses privados em detrimento da justiça social e do planeta.

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