Years and Years: a série que é uma vertigem sobre o (terrível) futuro próximo

Isto é 2019: Trump, mísseis e filtros de Snapchat. Isto é o futuro: populismo, uma vida online no nosso corpo, refugiados europeus e um clima impiedoso. A muito discutida mini-série distópica da HBO Portugal por acaso também é uma série sobre famílias.

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Robert Ludovic/HBO
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Nos últimos anos, o discurso televisivo distópico tem tido dois grandes nomes: Black Mirror e The Handmaid’s Tale. Olhares sobre a tecnologia e os direitos reprodutivos, narrativas sobre o futuro próximo ou ficção especulativa sobre algumas das grandes preocupações do nosso tempo. Agora, Years and Years juntou-se a elas no pódio das histórias sobre um futuro assustador. Estrutura-se em torno de uma família normal, reconhece as manhas do populismo e dá como aperitivo Donald Trump com o dedo no botão nuclear. O que vem a seguir é, como diria Margaret Atwood, ficção especulativa — assustadoramente plausível.

Esta é uma vida pós-“Brexit”, as borboletas estão desaparecidas, os refugiados são ucranianos e o chocolate é um produto de luxo. Esta é, avisa o diário britânico The Guardian, “a série mais assustadora de 2019”.

Years and Years é uma série de Russel T. Davies, autor de Queer as Folk, A Very English Scandal e de uma fase recente da veterana Doctor Who. São seis episódios que se estrearam em Maio na BBC e na HBO Portugal (só chegou aos EUA há um punhado de semanas) e tem como seu nome mais conhecido Emma Thompson, que interpreta a milionária desbragada Vivienne Rook. Os críticos britânicos vêem nela Nigel Farage, os congéneres americanos reconhecem-lhe os traços de Donald Trump. Rook é uma empresária que se destaca na opinião pública não pelas causas mas pela postura anti-institucional – quando se vira para a política, um dos seus lemas de campanha torna-se rapidamente “don’t give a fuck”.

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Mas a história não é dela, nem da alegre progressão para o extremismo. É da família Lyons e de como a vida colectiva é o que acontece enquanto fazemos os nossos pequenos planos. Encontramos os Lyons em Manchester e em 2019. Há o casal Stephen (Rory Kinnear) e Celeste (T'Nia Miller) e suas filhas Bethany (Lydia West) e Ruby (Jade Alleyne), e o irmão mais novo de Stephen, Daniel (Russell Tovey), casado com Ralph (Dino Fetscher). A cola da família é a avó Muriel (Anne Reid) e há ainda as irmãs Edith (Jessica Hynes), a activista distante, e Rosie (Ruth Madeley), que tem espinha bífida e acaba de ser mãe. É aí que o relógio acelera e vamos saltando no tempo, já com o refugiado ucraniano Viktor (Maxim Baldry) na trupe. Cinco anos depois, mais um salto, mais uns anos, e ao sexto episódio estamos em 2034. O que acontece ao clima, à tecnologia, à xenofobia e ao classismo são sintomas de mudança tão grandes quanto a idade dos protagonistas.

Este é um drama familiar pontuado por noticiários assustadores ou momentos do reino do absurdo – e poucas coisas são mais assustadoras do que as consequências de um absurdo que é cada vez mais frequente. A ideia da série tem anos e o final foi pensado há um quarto de século; o resultado desta longa maturação é uma história de ritmo acelerado, com finais de episódios vertiginosos e, em alguns momentos, uma leveza desconcertante.

Nos últimos anos, as distopias mais ou menos puras estão por todo o lado nesta altura de febril produção televisiva: Westworld, 3%, Colony, The 100, Altered CarbonThe Man in the High Castle e Philip K. Dick's Electric Dreams ou até a nova série britânica Curfew são exemplos de imagens nada utópicas do futuro pensadas para o pequeno ecrã. Mas se Years and Years é mais uma distopia televisiva, é também um “raro exemplo da televisão a ter em conta a situação actual e a mostrar-nos onde podemos de facto acabar”, escreveu Fiona Sturgess no mesmo Guardian.

A citação literal e directa da situação actual é um dos grandes trunfos de Years and Years. “O auge das distopias não se deve a Trump, mas não deixa de demonstrar o quanto é capaz de criar um cenário apocalíptico”, escrevia Aloma Rodríguez no El País em 2017. A escritora espanhola tinha lido a longa reflexão da jornalista e escritora Jill Lepore na revista New Yorker sobre a actual era dourada da ficção distópica em que a norte-americana identificava uma politização das distopias, com os eleitores a levar A Revolta de Atlas, de Ayn Rand aos tops de vendas quando Barack Obama foi eleito e, anos mais tarde, a devolver 1984, de George Orwell, às listas de mais vendidos após a subida o poder de Donald Trump.

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Nesse contexto, com Black Mirror já na Netflix desde 2011 e em plena altura de estreia da adaptação do livro homónimo de Margaret Atwood para o serviço de streaming Hulu com The Handmaid’s Tale, Jill Lepore era taxativa – e pouco solar: “A distopia costumava ser ficção de resistência; tornou-se uma ficção de submissão, a ficção de um século XXI solitário, desconfiado e taciturno, uma ficção de ‘fake news’ e ‘infowars’, a ficção da impotência e do desespero. Não consegue imaginar um futuro melhor, e não pede a ninguém que perca tempo com isso.”

Depois de alguns dos acontecimentos globais transformadores do século XXI, do 11 de Setembro à ascensão dos populismos no Ocidente passando pela crise de 2008 como exemplos mais recentes de como o tecido social começa a rasgar-se, Years and Years é também uma história sobre como a classe média confortável fica, como diz o crítico James Poniewozik no New York Times, “progressivamente mais desconfortável”. Esta ficção rendida não apresenta um comentário claro sobre a aprendizagem que poderíamos fazer, lamenta o crítico.

No meio de amores e desamores, Years and Years sugere o que pode acontecer quando se verifica que os alertas dos activistas e cientistas eram reais e que a crise climática já não tem retorno. Ou o que pode ser a realidade quando a identidade se entrelaça com a tecnologia – um filtro de Snapchat ou Instagram na sala, no corpo? O que pode ser o dia-a-dia quando o nacionalismo afecta o emprego ao fechar-se às multinacionais ou como uma família com pessoas de várias etnias, géneros e pessoas portadoras de deficiência sente na pele um regime político endurecido.

“O mundo continua a tornar-se mais quente e mais rápido e mais doido e nós não paramos, não pensamos, não aprendemos, só continuamos a correr em direcção ao próximo desastre”, exaspera-se a irmã Edith a certa altura. Mas nesta história, como assinala Matt Zoller Seitz, crítico da revista New York, “a questão é exactamente a justaposição do épico e do mundano”.

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