Senhora historiadora, não nos ofenda

A pior das escravaturas é a do pensamento. Anestesia milhões de humanos, força bruta do trabalho, da xenofobia, do preconceito e do racismo.

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Adriano Miranda

Na barbearia onde ia cortar o meu farto cabelo, além dos espelhos, do preçário e das prateleiras com aftershaves, estava pendurado na parede amarelada pela nicotina a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tinha de ser uma barbearia especial para trocar o calendário do gatinho pela enorme Declaração. O barbeiro, um homem alto e de pele escura, demonstrava mestria na hora de manejar a tesoura e a navalha. Outra mestria que lhe era reconhecida era a calma. Todo ele era paz. Se a cadeira de barbeiro hoje falasse, poderia contar muitas conversas entre a espuma da barba, o pente e a laca. Recordo com algum prazer um cliente que, recostado, dava vivas a Salazar. O barbeiro, que tinha na pele as cicatrizes do ditador, aguentou firme a navalha na goela do cliente até ao último pêlo. Valeu-lhe a paz.

Hoje é em casa que corto o pouco cabelo que resiste. O tempo fez de mim um careca. A barbearia ainda existe mas com um novo barbeiro. O da paz morreu. O novo pintou as paredes, colocou cadeira nova e deu sumiço à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nunca mais lá entrei. A barbearia humanista também morreu.

Foi curioso que ao ler o texto da historiadora Maria de Fátima Bonifácio (“Podemos? Não, não podemos”) lembrei-me do barbeiro da paz. Ele teria uma excelente resposta para a senhora historiadora. Desde o fascismo, à Segunda Grande Guerra, às ex-colónias, ao dia da liberdade, toda a história estava ali, em carne e osso. Seria uma grande lição que a intelectual consagrada não dispensaria ouvir.

Fiquei triste não pelo que a senhora historiadora escreveu – não esperaria outra coisa e de falta de coerência ninguém a pode acusar –, mas sim, por ler tal prosa no jornal em que todos os dias dou o litro e que defendo com unhas e dentes. Aquelas palavras bem podiam ser lidas no Encontro Nacional do Partido em Nuremberga nos anos 1930. Nas suas violentas palavras estão lá as sementes que ficaram guardadas num qualquer​ bunker alemão. As mesmas sementes que perseguiram e mataram judeus, ciganos, comunistas, socialistas, homossexuais, negros, crianças e mulheres. Não tenho o mesmo pedigree intelectual da senhora historiadora, mas atrevo-me a dar-lhe um conselho: viaje até Auschwitz e fique umas horas sentada a olhar para a parede. A parede banhada a sangue dos milhares de fuzilamentos que por lá se praticaram.

Nunca foi tão fácil resvalar para as generalizações como hoje. Meter tudo no mesmo saco e colocar Manuel Carvalho e a Direcção Editorial do PÚBLICO no mesmo saco que a senhora historiadora já me parece demais. Conheço os cinco jornalistas que compõem a Direcção Editorial e sei que não comungam dos valores racistas, xenófobos e fascistas. Imagino a urticária que sentiram ao ler tamanho insulto à dignidade humana. Em nome da Liberdade, eu nunca publicaria tal insulto. Mesmo depois de publicado teria a coragem, em nome da Liberdade, de retirar o texto. Serão as únicas, mas discutíveis, críticas que posso fazer à decisão da Direcção Editorial.

Num destes dias de sol, uma mulher nos intervalos das lambedelas a um gelado, defendia o regresso da escravatura. Dizia ela que foi nesse tempo que se fizeram grandes obras. Sugeri-lhe que se voluntariasse. Ela e os seus filhos. Riu-se. Percebi que gostaria de ficar com o chicote. Ainda existem pessoas assim. Por ignorância ou por ideologia. O problema está nos alicerces e não no telhado das sociedades que temos. O regime capitalista, mais bondoso ou mais agressivo, tem no seu sangue a materialização da luta feroz entre irmãos. Os irmãos somos todos, os humanos. À nascença somos catalogados, numerados. Somos ricos ou pobres, negros ou brancos, católicos ou muçulmanos, de direita ou de esquerda, do norte ou do sul, patrões ou trabalhadores, do primeiro ou terceiro mundo, analfabetos ou letrados. Somos obrigados a guerrear, uns para enriquecer, outros para comer. E enquanto for assim, não existe salvação. Um punhado chicoteia e muitos são chicoteados. O que a mulher, a que se lambuzava com o gelado, não sabe, é que a escravatura nunca acabou. Refinou-se. Modernizou-se. E a pior das escravaturas é a do pensamento. Anestesia milhões de humanos, força bruta do trabalho, da xenofobia, do preconceito e do racismo.

Uma avó desfilou na marcha LGBTI no Porto. Levava consigo um feliz cartaz que dizia: “Eu amo a minha neta e ela ama quem quiser.” Está tudo nesta magia de letras. Está aqui a solução. O amor, a dignidade humana. A diferença na igualdade. O fim do preconceito seja ele qual for. A revolução que o mundo reclama.

Podíamos fazer cartazes e colar nas igrejas, nas mesquitas, na Casa Branca, no Kremlin, nas savanas, nos pomares, nas fábricas, nas universidades, nas creches, nos lares, no Pólo Norte, no Pólo Sul, nos bairros da burguesia, nas favelas. E já agora, também na porta de casa da senhora historiadora. Acho que ela não tinha coragem de o rasgar. Não acham que é tempo de fazer um tempo novo?

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