General D no tempo em que não havia racismo em Portugal

Há cada vez mais visibilidade e consciência da negritude e também, por isso, mais reactividade.

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Por entre a catadupa de reacções emocionais, tão expectáveis quanto justas, ao texto de Maria de Fátima Bonifácio, dei por mim a pensar nele. Sérgio Matsinhe, mais conhecido por General D, pioneiro da cultura hip-hop, que na alvorada dos anos 1990 acabou por se tornar o rosto reconhecível de um discurso de consciência social e política que até aí estava silenciado.

Foi talvez o activista da sua geração que teve o entendimento de como o rap poderia funcionar como instrumento de construção das relações e representações sociais que emergiam no Portugal pós-colonial. Para muita gente que estará hoje nos 40 anos, constituiu talvez o primeiro contacto com um negro que afirmava explicitamente na TV que o racismo era uma realidade. Uma espécie de Mamadou Ba, num discurso menos sofisticado e noutro contexto, mas com a mesma coragem num país com falta dela.

Portugal, que tinha uma auto-imagem de país integrador da diferença, era confrontado com o desejo de visibilidade da segunda geração de portugueses com origens familiares em África, que se expressava através do rap. E o que tinham para dizer não era entendido. Não surpreende que, depois de alguns discos e de estimular um discurso sociopolítico, se tenha isolado, desiludido e partido. Durante mais de 15 anos perdeu-se-lhe o rasto. Em 2014, fui encontrá-lo em Londres.

E era explícito. Tinha partido porque Portugal não estava preparado para ele e ele também não se sentia preparado para aquele país dos anos 1990. “A geração dos meus pais havia sido cuidadosa. Não queria dar nas vistas. Não exigia grandes direitos políticos, económicos ou sociais. Nós não. As pessoas não estavam habituadas a ver um negro a falar de segregação e dizer coisas de forma directa, mostrando o que sentia”, dizia então. 

O Portugal da época não queria falar de racismo. Hoje a realidade é, e não é, diferente. Existem felizmente muito mais vozes activas. Mas continua-se, no espaço público, numa lógica discursiva circular, como se não conseguíssemos passar do enunciado do problema (existe ou não racismo em Portugal?) para o confronto de ideias, diferentes propostas tendentes à sua superação, sabendo que o racismo não é um acontecimento, mas um processo. Não se dissipa. Circunscreve-se ou atenua-se. 

O debate a fazer não é constatar o óbvio — claro que há racismo em Portugal — mas perceber como se manifesta e discutir políticas no sentido de delimitar quaisquer formas de segregação. Daí que o momento que estamos a viver seja importante. Há cada vez mais visibilidade e consciência da negritude e também, por isso, mais reactividade. Por outro lado, existem posições políticas concretas em conflito e isso é positivo.

As recolhas étnico-raciais nos censos, e a possibilidade de quotas, se estas se basearem apenas em critérios “raciais”, e não tiverem em atenção elementos sociais e de condição económica, merecem ser discutidas. É preciso avaliar prós e contras. Se não queremos criar subgrupos marginalizados, têm de ser criadas condições para o acesso pleno ao emprego, habitação, saúde, educação e à cidadania, sabendo que não existem modelos perfeitos. Se desejamos promover a igualdade de oportunidades, temos de estar dispostos a avançar com políticas que sejam compensadoras de assimetrias ancoradas numa história de exclusão.

Dessa forma, talvez não acabemos por completo com o racismo, mas os mais atingidos terão outras possibilidades de se afirmarem, como aliás já está a acontecer, numa dinâmica para a qual contribuíram agentes como General D, que ergueram a sua voz, apesar de todos os vazios à volta.

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