O ovo no escuro

Contos escolhidos de um dos melhores escritores brasileiros contemporâneos. Uma antologia de antologia.

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São 27 contos de Sérgio Sant´Anna incluindo um inédito de 2019 Divulgação Chico-Cerchiaro

A editora Relógio D’Água tendo publicado há três anos Todos os Contos de Clarice Lispector, não há razão para os leitores portugueses se não lembrarem de um conto da escritora brasileira intitulado O ovo e a galinha (extraído do livro A Legião Estrangeira, de 1964). Clarice é, em bela medida, o fulcro de uma das narrativas de Sérgio Sant’Anna incluídas na antologia O Pássaro da Perfeição. Trata-se de um conto circular intitulado A bruxa, retirado de O Conto Zero e Outras Histórias (2016): partindo da intromissão em seu apartamento de uma mariposa negra, empurrada pelo vento que precede uma tempestade, sucessivas associações de ideias despertadas pelo nome vulgar do lepidóptero levam o narrador a recordar os medos da infância, o “bruxo do Cosme Velho” (Machado de Assis) e, obviamente, a autora de A Maçã no Escuro, “a escritora bruxa”, em relação à qual — “mulher dotada de uma beleza tão única e original como os seus livros” — chega a confessar fantasias amorosas e sexuais, num movimento autoficcional típico no autor. Conta Sant’Anna que, tendo sido uma vez convidada a participar num “congresso de bruxaria” na Colômbia, Clarice Lispector compareceu, limitando-se, porém, a ler para a assistência essa “peça magistral que contém em si todo o mistério da vida” — precisamente, o conto intitulado O ovo e a galinha. O que é mais curioso, talvez, é que esta divagação do narrador de A bruxa parece revelar-nos retrospectivamente a génese da imagem central do conto A aula, publicado por Sérgio Sant’Anna quinze anos antes no livro Breve História do Espírito. Os leitores, que certamente terão (re)lido entretanto O ovo e a galinha, recordarão agora que, a partir da imagem matinal de um ovo sobre a mesa de uma cozinha, o texto de Lispector gera concêntricos devaneios poético-analíticos. De um modo semelhante, o texto de A aula — que dialoga também com “o verbo divino de Joyce” e com Saussure —, é inteiramente sustido pela poderosa imagem inicial de um ovo, nas trevas que um feixe de luz atravessa, imagem que depois se enreda em labirínticas variações simbólicas, intertextuais e linguísticas.

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