Maya Deren e o desejo, amplificados e distorcidos por Thurston Moore

O guitarrista dos Sonic Youth soube fazer justiça aos filmes de vanguarda desta pioneira do cinema norte-americano, num sedutor programa do Curtas Vila do Conde.

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JOÃO BRITES
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JOÃO BRITES

À saída do filme-concerto de quarta-feira no Curtas Vila do Conde, enquanto o público que esgotava a lotação do auditório principal se congregava para conversar frente ao Teatro Municipal, lança-se a pergunta: “Seria Maya Deren a Jane Russell do cinema de vanguarda americano?” Sim, era uma mulher lindíssima, expressando abertamente uma sensualidade quase inexistente no cinema (mainstream ou não) dos anos 1940.

O mais aguardado dos filmes-concerto do programa Stereo da edição 2019 do festival era, então, este: Thurston Moore, grande padroeiro da vanguarda musical nova-iorquina pós-punk, a sonorizar uma espécie de “curso acelerado” do cinema de Deren (1917-1961), obra rara, curta mas intensa, que ainda hoje é uma das “estrelas do Norte” da produção underground/experimental. 

O programa, de cerca de uma hora, incluía os três filmes seminais desta cineasta independente pioneira – Meshes of the Afternoon (1943), At Land (1944) e Ritual in Transfigured Time (1946) –, o “rascunho” A Study for Choreography on Camera (1945) e o inacabado The Witch’s Cradle (1943, com a colaboração de Marcel Duchamp), acompanhados à guitarra eléctrica num ir e vir onírico que tanto propunha delicados idílios melódicos como violentas cascatas de distorção sónica, passando por elegantes quedas de água hipnóticas. Trabalhando a partir de peças previamente compostas (já a pensar nestes filmes, que Moore sonorizou por várias vezes) mas sem as “colar” especificamente a planos ou âncoras visuais, o guitarrista, discreto a um canto do palco, de costas para o ecrã, entregou-se à música como se estivesse na sua sala de estar. Como se estes filmes fossem velhos amigos com os quais já mantivesse uma ligação intuitiva.

A guitarra de Moore foi um guia pelo território experiencial, surrealista, do cinema de Deren – não a dizer-nos “aqui fica isto” ou “ali fica aquilo”, mas a pedir-nos que o seguíssemos sem rumo definido. Os filmes de Deren são eles próprios labirintos oníricos, jogos de espelhos onde a realidade e a fantasia se confundem permanentemente em visões surrealistas, originárias de uma qualquer “escrita automática” em transmissão directa do subconsciente. A música de Moore limita-se a lançar um trilho de pedrinhas no chão para não nos perdermos até chegarmos à saída, respondendo às imagens ora por complementaridade, ora por contraposição. Em nenhum momento o guitarrista dos Sonic Youth pareceu estar a passar “ao lado” dos filmes, ao mesmo tempo que estes se mantinham intocados, poderosos, irredutíveis, ganhando com a ilustração sonora sem nunca perderem um grama do mistério ou do feitiço que projectam.

Voltamos à questão de abertura: seria Maya Deren a Jane Russell do cinema de vanguarda? Ou, até, Ava Gardner, com quem partilhava uma mesma sensualidade quase animal? Não é, juramos, nada implausível. A sensualidade é uma componente fortíssima nos dois filmes do programa em que ela própria está frente a câmara – Meshes of the Afternoon At Land . Não uma sensualidade mediada pelo olhar dos homens; antes uma sensualidade assumida, orgulhosa, de uma mulher forte e em controlo, que escrevia, dirigia, representava, concebia e montava os seus filmes. Maya Deren seria, então, a anti-Jane Russell: não uma criação de um produtor ou de um círculo, uma self-made-woman em plena consciência do desejo que expressava num período muito específico da sociedade americana. Um objecto de obscuro desejo que a música de Thurston Moore apenas tornou mais enigmático e sedutor.

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