Gaëtan, o artista que eternamente se procurou a si mesmo

A obra de Gaëtan (1944-2019) centrou-se no trabalho sobre a auto-representação – o artista dizia que não fazia auto-retratos

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Obras de Gaëtan no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado daniel rocha

Morreu esta terça-feira Gaëtan, artista que trabalhou incessantemente a sua própria imagem através do desenho, num corpo de obra de grande qualidade que ganhou visibilidade depois da década de 80. Da última vez que o visitámos, na preparação de uma exposição, mostrou-nos uma casa repleta de obras dos amigos. Confessou que trabalhava num suporte alto (naquele caso, uma tábua de passar a ferro tinha sido suficiente), que empoleirava o espelho onde não tivesse que ver o papel, e que, por vezes, começava a desenhar com a mão esquerda – era dextro – para contrariar vícios de um talento inato. Na sala de jantar vivia um pardal à solta, mesmo com a janela escancarada, que não parecia ter vontade de se ir embora. Gaëtan estava doente há muito tempo, de cancro.

Gaëtan Lampo Martins de Oliveira nasceu em Luanda em 1944, mas fez toda a sua vida de adulto em Portugal. Começou a expor em 1978, na galeria Módulo, e a partir dessa data realizou inúmeras exposições individuais e colectivas. Das primeiras, destaca-se a grande antológica feita no antigo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian em 1996, intitulada Terra de Ninguém e uma outra no museu do Chiado, em 2004. Preparava uma segunda individual importante para a Fundação Carmona e Costa. Entre as colectivas que realizou destacam-se a XI Biennale de Paris (1980), a LIS’81 — a exposição que foi destruída no incêndio do pavilhão de Belém, nesse ano —, a V Trienal da Índia (1982), Tríptico, durante a Europália, no Museum van het Hedendaagse de Gent (1991), O Rosto da Máscara, no CCB (1994). Está representado em todos os grandes museus nacionais.

A obra de Gaëtan centrou-se, embora não exclusivamente, no trabalho sobre a auto-representação — o artista dizia que não fazia auto-retratos —através da repetição do gesto e da procura da diferença de imagem para imagem. Procurando a essência da identidade, nunca a encontrando, centrava-se na disciplina do desenho, feito em casa através de observação directa e obsessiva de rostos, corpos e objectos. Sobre o seu próprio rosto, dizia que era “figura de interpelação ao espectador, lugar de reflexão inquieta que os gestos e os acasos do acto de desenhar (entre o risco rápido e violento e a garatuja quase imperceptível) mais acentuam”. O auto-retrato, mais do que um propósito a alcançar através da técnica, consistia no suporte onde o artista se encenava a si próprio e convocava ficções de matriz cinematográfico ou literário, domínios onde a sua cultura era excelente, indo as suas preferências do Padre António Vieira a Truffaut (série Adèle H: six portraits, de 1998) ou Jacques Demy. Em tempos, usando o nome Gaëtan Martins de Oliveira, trabalhara na hoje já extinta editora Ulisseia e assinara traduções de autores como António Tabucchi, Marguerite Yourcenar, Italo Calvino, Bruno Zevi.

Em 1998, ao apresentar a exposição Cavaterra, no Museu de Arte Contemporânea do Funchal – Fortaleza de São Tiago, João Pinharanda interrogava se as imagens de Gaëtan seriam máscaras. E desenvolvia, ainda no texto do catálogo da exposição: “E, sendo máscaras, serão máscaras de teatro, de carnaval ou máscaras funerárias? Ou serão cada um desses tipos, segundo as ocasiões e os propósitos do trabalho? Serão máscaras que Gaëtan coloca, não sobre o seu rosto, mas em frente do seu rosto? (…) De qualquer maneira, são um Outro”. Adiante, esclarecia que “o trabalho de Gaëtan é realizado contra qualquer ideia de tranquilidade, é feito Contra Mundum, não com uma vontade de ruptura, mas com o irresistível arrepio de quem passa sobre um gato, uma e outra vez, uma mão a contrapelo.”

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