“A maior expressão de preconceito racial consiste na negação deste preconceito”

A ministra da Justiça falou nesta terça-feira na conferência “Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-Racial em Portugal”, na Assembleia da República. Leia a versão escrita do discurso na íntegra.

Pensar, ponderar, analisar e acima de tudo, realizar estudos sobre os fenómenos do racismo, da xenofobia e da discriminação étnico-racial em Portugal, constitui uma necessidade imperiosa de uma sociedade que cresceu e se diversificou no plano étnico, no plano racial, no plano cultural. Felicito, por isso, a 1ª Comissão e, em particular a subcomissão para a igualdade e não discriminação por esta feliz e tão oportuna iniciativa.

Sem informação obtida através de estudos, inquéritos e análises aprofundadas e sérias sobre estas temáticas nunca chegaremos a conhecê-las na sua dimensão integral, sendo incontornável que estes fenómenos existem e atravessam, transversalmente todos os estratos da sociedade.

O relatório agora apresentado evidencia claramente essa necessidade de obtenção de informação estruturada, detalhada e atualizada. É redutor e pode ser indutor de erros que cada um de nós fundeie a sua opinião, apenas, em perceções e na análise da realidade limitada que conhece.

Tenho a perceção – que julgo partilhada por muita gente -, de que na população racial ou etnicamente diferenciada se inscrevem:

- Os economicamente mais desfavorecidos;

- Os que possuem os empregos com posições de mais baixa qualificação e consequentemente mais mal pagos;

- Os estudantes que apresentam taxas de reprovação e de retenção escolar mais elevadas e revelam maior abstenção escolar;

- Os cidadãos com taxas de inserção no ensino superior mais baixas;

- Os que registam uma maior taxa de encarceramento criminal; 

- Os que residem na periferia da periferia, juntando-se em bairros que tendem a transformar-se em guetos, não só económico-sociais, mas também culturais.

Tenho, de igual modo, a perceção que essa realidade não é idêntica para as várias comunidades étnico-raciais que residem em Portugal. A discriminação é hierarquizada – existirão uns que estão mais no fim da cadeia do que outros. Ou seja, que o vivenciado pela comunidade negra, ou cigana, não é semelhante ao vivenciado, por exemplo, pelas comunidades de nepalesa, paquistanesa, da europa de leste, brasileira ou chinesa. No que diz respeito a estas últimas, a ideia que parece transparecer é a de que a sua inclusão, pelo menos do ponto de vista social e económico, se mostra um pouco menos difícil, apesar de não deixam de pertencer a grupos étnicos diferenciados. 

Mas, será esta perceção correta ou ela resultará, tão só, do desconhecimento sobre a vivência destas comunidades? O que se passará em relação à islamofobia e ao antissemitismo? Qual a medida da sua existência e que repercussões tem na sociedade portuguesa?

A verdade é que, confesso, não gosto de formar juízos com base em perceções. Confio em factos e não simpatizo com presunções. Também por esta razão, me regozijo pela promoção e realização do trabalho que originou o relatório hoje aqui se apresentado e, mais ainda por a iniciativa partir dos eleitos do povo.

Sobre estas temáticas relacionadas com o racismo, a xenofobia e a discriminação étnico-racial tende a recair um enorme manto de silêncio. Tanto quanto me é dado a conhecer, são realizados alguns estudos sectorais, mas não se encontra disponível informação ampla e abrangente, suscetível de ser cruzadas e trabalhada, com base na qual se possa extrair conclusões seguras sobre a realidade.

Perguntas tão simples como as de saber quantos são os membros destas comunidades; que idade têm; quantos nasceram em Portugal; quantos aos que não nasceram, há quantos anos aqui residem, onde e como vivem, quanto auferem, que graus de escolaridade detêm, que acesso a empregos, a habitação, a cuidados de saúde ou a bens e serviços lhes são negados? Estas questões não têm hoje resposta. No entanto, se não conhecemos as várias vertentes do problema, nem tão pouco a sua dimensão, como é que poderemos atuar de forma integrada e eficaz?

Parafraseando James Baldwin – uma das vozes mais influentes do movimento dos direitos civis, nos Estados Unidos, “nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado. O confronto nem sempre traz uma solução para o problema, mas enquanto não enfrentarmos o problema, não teremos solução”. 

Durante décadas, apregoar a inexistência de fenómenos racistas na sociedade portuguesa tornou-se um quase lugar-comum. A repetição incessante da ideia não teve, contudo, a virtualidade de a converter em verdadeira.

A maior expressão de preconceito racial consiste, precisamente, na negação deste preconceito.

Porque, como escreveu Sophia de Mello Breyner, – «Vemos, ouvimos e lemos, Não podemos ignorar». E falando na primeira pessoa, eu acrescentaria que se para alem de vermos, ouvirmos e lermos, também sentimos – essa ideia da inexistência de fenómenos racistas na sociedade portuguesa foi, paulatinamente, perdendo solidez.

Um número não despiciendo de pessoas passou então a acreditar, na sequência de uma corrente de pensamento que já emerge do século XIX, que a escola, o conhecimento e a cultura se encarregariam de resolver a questão. Bastaria esperar pelo decurso do tempo e pela emergência das novas gerações que, progressivamente, mais escolarizadas teriam, necessariamente, uma abordagem e uma estar diferenciado e iminentemente inclusivo.

Claro que importa acreditar na educação e na escolarização, mas não há evidência de que essa seja, a solução para os problemas do racismo e da xenofobia nas nossas sociedades. Ninguém duvida que hoje, não só em Portugal, mas também na Europa, a população, principalmente a mais jovem, alcançou um grau de escolarização muito superior relativamente às gerações que a precederam. 

Mas esse facto determinou que tivesse diminuído, por exemplo, o discurso de ódio ou a reação perante a diferença racial ou étnica? Diria que não. Pelo contrário, parece ter-se refundado, em pleno século XXI, um discurso de ódio ao diferente, com óbvio recrudescimento das sociedades xenófobas e racistas.

É esta constatação que conduz à conclusão de que, relativamente a estas temáticas, bem como em relação a outras, infelizmente a educação, o conhecimento e a cultura não consubstanciam a magia do Santo Graal. Um grau de escolaridade mais elevado poderá tornar as reações mais subtis, menos primárias ou grosseiras, mas não tem a faculdade de as eliminar. 

Quantas e quantas vezes ouvimos, proferida pelas pessoas mais diversas e diferenciadas: não sou racista mas …, sendo certo que após a adversativa se segue um comentário que, seguramente, exemplifica ou demonstra um qualquer estereótipo negativo que marcará a diferença entre “nós e os outros”.

Inúmeras pessoas afirmarão, sem hesitar – que o racismo é estúpido. No entanto, algumas dessas pessoas provavelmente não admitirão, nem sequer perante si próprias, que a diferença os incomoda ou mesmo que lhes causa aversão e lhes determina a reações hostis. 

Como já alguém afirmou, o racismo é o crime perfeito – quem o comete acha sempre que a culpa é da vítima.

Relativamente a estes fenómenos não há uma solução ou a solução. Existirão, ao invés, inúmeros ângulos que necessitam de ser abordados sendo que, entre estes, os mais prementes se prendem com a desigualdade e com a exclusão. 

Como intervir perante o medo da diferença? Como agir e o que fazer para a diferença não se transmute em desigualdade? 

Mais: como intervir na sociedade atual onde a coberto do anonimato potenciado pelas redes sociais floresce o sentimento anti-imigrante e onde grande parte dos males do mundo é imputado a um outro que, por qualquer razão, nos seja dissemelhante?

Creio que uma das chaves – claro está que integrada numa miríade de outras – será a da inclusão. O receio, o medo e a hostilidade serão, creio, tanto menores, quanto mais o diferente nos seja próximo, quanto mais convivermos, repartirmos, e estabelecermos cumplicidades com esses outros.

Essa inclusão apenas se alcançará se os que aparentemente não são iguais frequentarem as mesmas creches, o mesmo ensino pré-escolar, as mesmas escolas, forem vizinhos ou colegas de trabalho. Se tiverem os mesmos estímulos.

Esta será, creio, uma das vias que possibilitará que a diferença deixe de convulsionar ou inquietar e se converta em normalidade. Essa normalidade poderá então criar a oportunidade para, fazendo minhas as palavras do Papa Francisco, «viver com a cultura do outro» e, ao vivê-la, a vermos e sentirmos como natural.

Importa, todavia, que não tenhamos ilusões: a estrada que importa percorrer é imensa e, não raras vezes, o caminho parece infinito. Não obstante, acredito, firmemente, que um dia virá que todos concordarão, sem reserva, com Gabriel García Marquez​: uma pessoa só tem direito de olhar outra de cima para baixo no momento de a ajudar a levantar-se.

Temos de construir sobre bons valores partilhados e ver na diversidade, não uma ameaça, mas antes uma riqueza: Portugal não merece nem espera de nós outra atitude.

Termino felicitando mais a primeira Comissão por ter decidido iniciar um debate esclarecido sobre questões subalternizadas no pensamento e discurso institucionais. Nesta matéria o negacionismo, a persistência na desvalorização do fenómeno conduz ao desastre e à radicalização de posições.

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