“À Espera de Godot”, na guerra e na paz

Neste início de século XXI muitos de nós já se interrogaram se a humanidade vive em paz ou em guerra. A resposta depende, desde logo, da parte do mundo onde vivemos.

1. O mundo provoca frequentemente apreensão e angústia existencial. Neste início de século XXI muitos de nós já se interrogaram se a humanidade vive em paz ou em guerra. A resposta depende, desde logo, da parte do mundo onde vivemos. As percepções são certamente diferentes para os que vivem numa zona de “paz perpétua” como a União Europeia, ou fora dela, como no Leste da Ucrânia, na Síria, ou no Iémen. Ao mesmo tempo, depende também, de uma forma mais subtil, da maneira como definimos paz e guerra. No passado, pelo menos naquele passado que é familiar aos ocidentais, a guerra era precedida de uma declaração formal de guerra. Costumava terminar com um armistício ou a rendição (in)condicional de um dos beligerantes. Num mundo globalizado, que é simultaneamente moderno, pré-moderno e pós-moderno, a linha que separa a paz da guerra diluiu-se. Entramos numa zona híbrida. Estão em curso múltiplos conflitos difusos os quais escapam a uma simples categorização binária de paz ou de guerra. Não há armistício, nem rendição, para guerras que não foram declaradas.

2. Na política internacional muitos continuam “à espera de Godot”. En attendant Godot, no título original da primeira edição em língua francesa, publicada em 1952, é uma das obras literárias mais curiosas e desconcertantes de Samuel Beckett. Insere-se numa corrente estética conhecida como “o teatro do absurdo”. A expressão foi criada a posteriori da referida obra de Samuel Beckett, inspirada nas reflexões filosóficas de Albert Camus sobre a existência humana. O “teatro do absurdo” é caracterizado por cenas desconexas que alternam entre o cómico e o trágico, por personagens enredadas em problemas sem solução, paradoxos, jogos de palavras e afirmações que não parecem ter qualquer sentido (“nonsense”). No caso de “À espera de Godot” dois personagens (Estragon e Vladimir) estão à espera de um terceiro (Godot), que nunca chega. Na peça teatral, Beckett explorou várias facetas do absurdo da vida humana. No mundo de hoje, as declarações de guerra e os de tratados de paz fazem lembrar o personagem ficcional Godot: podem nunca chegar. Mas isso não significa que não exista guerra, nem paz.

3. Ao longo da primeira metade do século XX o jus ad bellum, o direito de os Estados fazerem guerra, evoluiu para um jus contra bellum. A fórmula legal está explícita no artigo 2º, no 4º, da Carta das Nações, com as excepções da defesa individual ou colectiva previstas no artigo 52º. Na prática, é inútil. A consequência da proibição legal dos Estados fazerem a guerra não foi acabar com a guerra. Foi acabar com as declarações formais de guerra, o que não é a mesma coisa. No passado, em democracias, as guerras eram usualmente feitas com a autorização prévia dos parlamentos. Hoje não é assim. O caso dos EUA exemplifica a tendência: desde a II Guerra Mundial não fizeram qualquer declaração de guerra a outros Estados. Nem na Coreia, nem no Vietname, nem no Iraque. (Ver Jennifer K. Elsea e Matthew C. Weed, Declarations of War and Authorizations for the Use of Military Force: Historical Background and Legal Implications 18/04/2014). A estratégia de todas as grandes potências passa por fazer a guerra, mas sem lhe chamar guerra.  A Rússia, na Crimeia, no Leste da Ucrânia e na Síria; e a China, na zona envolvente marítima do Pacífico, do Vietname às Filipinas, têm igualmente mostrado grande criatividade a contornar o Direito Internacional. Os termos hoje mais utilizados para guerra poderiam constar do dicionário da novilíngua imaginado por George Owell, na distopia 1984: intervenções humanitárias, operações de imposição da paz, ou de manutenção da paz, reintegração de um território, ou acções de segurança. Quanto à guerra, a impressão que fica pela linguagem asséptica usada é que só está em curso no comércio. (Ver Timeline: Key dates in the U.S.-China trade war in Reuters, 8/05/2019). Mas remover ideias indesejadas da mente do público não elimina a crua realidade da guerra. Confunde, de forma deliberada, a representação da realidade.

4. O teatro da política internacional contemporânea faz lembrar o “teatro do absurdo”. Quem faz verdadeiramente guerra (warfare) não lhe chama guerra (war), escondendo-se numa criativa cosmética linguística e disfarçando a autoria das operações. Ao mesmo tempo, em áreas da vida humana onde não se faz guerra — pelo menos no sentido usual, o que implica o recurso à força e a uma violência física organizada —, o termo prolifera sem problemas. Assim, há “guerras” económicas, comerciais, cambiais, cibernéticas e até jurídicas. (Ver Lawfare Institute, What is lawfare?). No mundo das últimas décadas, só o Iraque não teve problemas em usar um anacronismo criado pelo espírito legalista dos europeus. Saddam Hussein declarou guerra ao Irão a 22 de Setembro de 1980 (ver Iran-Iraq War in History, 9/11/2009, ). Ao longo de oito anos, ambos os Estados lutaram numa guerra com exércitos fardados, meios militares convencionais, trincheiras e armas químicas. Quase tudo bastante familiar e enquadrável nos cânones clássicos da guerra e da paz. Mas o Irão aprendeu a lição. Percebeu como isso é um anacronismo pernicioso. Agora também já não faz guerra. Instrumentaliza o Hezbollah no Líbano — como fez contra Israel em 2006 —, as milícias xiitas no Iraque e na Síria, ou os houthis no Iémen. Por sua vez, os seus inimigos, a Arábia Saudita e outros, replicam a estratégia com o Daesh, a Al-Qaeda e similares. Ninguém declara guerra a ninguém. Todos querem a paz e respeitam legalidade internacional. O mal está no outro.

5. As imagens da guerra do Iraque em 2003, ou da guerra do Kuwait em 1991, voltaram a emergir na actual crise EUA-Irão. A desvinculação dos norte-americanos do acordo sobre o programa nuclear iraniano, o agravar das tensões entre os dois países nos dois últimos meses e a recente violação pelo Irão dos limites para o enriquecimento de urânio (ver Iran Passed Its Uranium Limit. What Happens Next? in NYT, 1/7/2019), fazem recear o pior. Mas o Irão, em termos geopolíticos (perto de 1.650.000 km² e de 83 milhões de habitantes), é uma outra realidade. É bem mais vasto do que o Iraque (este último tem muito menor dimensão e população: cerca de 440.000 km² e de 40 milhões de habitantes). Na guerra de 2003, a invasão terrestre, tal como ocorreu, só foi possível porque os EUA, o Reino Unido e outros Estados aliados puderam deslocar mais de 100.000 soldados, durante vários meses, para bases militares no Kuwait, a Sul, e também no Norte do Iraque, na zona do Curdistão. (Ver National Army Museum, Iraq War: The invasion). As zonas de exclusão aérea, a Norte e a Sul do Iraque — a primeira para proteger os curdos e a segunda para proteger os xiitas —, instaladas após a guerra do Kuwait em 1991, permitiram que essa manobra militar fosse feita com total domínio do espaço aéreo. As forças militares terrestres concentradas para a invasão não foram bombardeadas ou atacadas por mísseis. Mas no Irão não há zonas de exclusão aérea. Como notado, a dimensão do território e população é largamente superior, o que implicaria muito mais militares no terreno — no Iraque foram insuficientes. Para além disso, existem capacidades de mísseis balísticos que poderiam colocar sérios problemas a uma manobra militar idêntica. (Ver Iran Has Amassed the Largest Ballistic Missile Force in the Middle East in The National Interest, 22/05/2019, ). Assim, imaginar uma guerra similar à de 2003 é ficar “à espera de Godot”. A guerra, a surgir, será sob disfarce semântico, travada na sombra e por actores por interpostos, ou num confronto directo predominantemente com meios navais e aéreos. As perdas de vidas humanas lembrarão que esse é um “teatro do absurdo” maior do que o de Becket.

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