A lição póstuma de Raymond Barre

O caso Raymond Barre prova que nada nem ninguém está fora do controlo e da fiscalização efetiva e que a ordem pública justa é o melhor factor de promoção da coesão social, de afirmação da democracia e de protecção das liberdades cívicas.

Os 11 milhões de francos suíços não declarados em França por Raymond Barre referentes a uma conta de que era titular no banco Credit Suisse, na Suíça, são um escândalo de proporções épicas que molesta o contribuinte cumpridor e afeta a confiança das comunidades nas instituições, nas lideranças e na ordem pública democrática. O contexto de crescente radicalização e descrença política convida a uma análise, serena e informada, pois o caso tem um lastro de potencial populismo e sentimento de revolta ligado a mais um caso de injustiça e impunidade nas altas e poderosas esferas, que contrasta com a tragédia quotidiana no Mediterrâneo, com a amargura das reivindicações dos coletes amarelos ou com o desespero de quem está em lista de espera para aceder a uma cirurgia ou sujeito a um IRS asfixiante.

A meu ver, este caso ultrapassa a questão do não pagamento pontual do imposto, posto que deixa no ar a dúvida sobre a origem e o destino de uma fortuna astronómica que, segundo dados credíveis, se desvia amplamente do património declarado e das fontes de rendimento conhecidas de Raymond Barre. Acresce que consiste numa violação de regras de convivência social, das quais depende uma sociedade sã, perpetrados por aquele que esteve incumbido do dever de cuidar da comunidade na qualidade de primeiro-ministro da República Francesa, e era reconhecido internacionalmente com uma referência científica e moral.

Ironicamente, e bem vistas as coisas, a verdade é que Raymond Barre deixa-nos uma “lição póstuma” que julgo de utilíssimo efeito pedagógico porque abre um horizonte de esperança e confiança no futuro, em especial para o cidadão cumpridor. Ao contrário do que possa parecer, este caso é um sinal de vitalidade da ordem pública democrática, das instituições, da eficiência das autoridades, em especial da UE, e da imprensa livre. Isto porque na sua origem está a aplicação de uma nova geração de normas anti-evasão fiscal e de práticas de controlo e fiscalização resultantes da cooperação internacional com epicentro na transparência fiscal, em reação à crise de 2007-2008, na qual a UE foi, e é, líder mundial, forçando por exemplo à capitulação do regime de anonimato Suíço. Comprova igualmente que o braço da lei chega a todo o lado e que nada nem ninguém está acima da lei, incluindo a da morte natural. Comprova também que existe uma profunda mudança na atitude social e dos mass media face ao não cumprimento dos deveres fiscais, que manifesta a emergência de uma nova cidadania económico-financeira centrada na sustentabilidade financeira e na aspiração social da interligação entre liderança, responsabilidade e integridade. Assim como manifesta a afirmação do que venho designando por economia reputacional, que obriga a repensar a importância do risco reputacional. Todos os comportamentos como o de Raymond Barre são agora fortemente punidos na legislação, nos tribunais, e hostilizados nas relações sociais e critérios editoriais por uma censura emocional com reflexos que podem ser muito severos nas atitudes, e originar danos reputacionais ao ponto de retirar a licença social ao visado.

Devido a tudo o que mencionei, esta “lição póstuma” de Raymond Barre é utilíssima também porque renova a importância das políticas públicas de luta contra a evasão fiscal, os fluxos financeiros ilícitos, em especial de luta contra a corrupção pelos agentes políticos, e da aplicação efetiva da legislação sobre o beneficiário efetivo. Estas políticas e legislação são antes de mais o garante da coesão social e da democracia centrada na tributação progressiva, na sã concorrência e na justiça social. Utilíssima lição ainda porque interessa directamente a Portugal no sentido em que reforça o mérito do empenho do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao declarar no dia seguinte à divulgação do relatório sobre Portugal adoptado em junho de 2019 pelo Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO), e cujas recomendações são um pouco desprestigiantes para o País, que o “combate à corrupção é uma grande prioridade para Portugal e para mim desde o início do meu mandato”.

Sendo, a meu ver, um dever de cada cidadão dar apoio e continuidade quotidiana a esta prioridade de Portugal, exigindo que se tornem efetivas as regras de transparência sobre agentes políticos e públicos, os conflitos de interesses, ou o reforço dos meios operacionais da Inspeção Geral de Finanças, da Autoridade da Concorrência, da CMVM, do DCIAP, da Polícia Judiciária, do Tribunal de Contas e de outros órgãos de controlo e fiscalização, tendo presente o corajoso alerta de Joana Marques Vidal, feito em 28.06.2019, de que “há efetivamente algumas redes que capturaram o Estado e que utilizam o aparelho do Estado para a prática de atos ilícitos e, felizmente, algumas estão a ser combatidas, mas outras continuam a fazer isso e há até outras que começam”.

Perante tudo isto, o caso Raymond Barre prova que nada nem ninguém está, ou deve estar, fora do controlo e da fiscalização efetiva e que a ordem pública justa é o melhor factor de promoção da coesão social, de afirmação da democracia e de protecção das liberdades cívicas. Assim como exemplifica duas certezas que gosto de sintetizar assim: uma é que o Bem triunfa e que não bate à porta para entrar; a outra é que não há longevidade sem integridade.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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