Há aparências que não iludem

Ninguém é ingénuo. Hoje toda a gente sabe que há um projecto de populismo iliberal – um eufemismo para autoritarismo – que alastra na Europa e escolheu como primeiro alvo a independência do poder judicial

Há uns anos, numa reunião em que participei, um antigo Procurador-geral da República (PGR) disse que um conhecido político lhe telefonou a sugerir que a procuradora que o andava a investigar tivesse um processo disciplinar e fosse “corrida”. Muitos anos depois, tinha esse político crescido em importância e responsabilidade, calhei a estar numa reunião com ele (e mais cinco pessoas). A certa altura, numa só frase, disse tudo. Para ilustrar a roda-livre que é o Ministério Público (MP), sob o embaraço do seu staff, contou que uma procuradora o tinha andado a incomodar com investigações descabidas e ligou ao PGR para a “castigar” (sic) mas ele não fez nada – sim caro leitor, isso mesmo, leu bem: um político, com a desfaçatez de achar isso normal, queria correr com a procuradora que o investigava. Não vale a pena dizer quem é o político. Os partidos não me interessam. O que me preocupa são certas concepções peculiares de democracia.

Entretanto, na revisão do estatuto do MP apareceram duas propostas de modificação da composição do respectivo conselho superior (CSMP). Uma, a do PS, mantinha a actual maioria de magistrados, mas alterava a forma de designação de dois deles, que deixavam de ser eleitos pelos pares. Outra, a do PSD, reduzia o número de magistrados e colocava-os em clara minoria, perante os membros designados pelo parlamento e pelo governo. Foram chumbadas porque se entendeu que poderiam facilitar o controlo político das investigações de crimes de corrupção e outros que envolvem pessoas importantes da esfera pública.

Não faltou quem viesse logo acusar os obscuros interesses corporativos-sindicais de condicionarem a acção dos órgãos legítimos da república. Peço desculpa, a ver se percebi bem: não foram os deputados no Parlamento que por maioria rejeitaram aquelas propostas? Não foi o Presidente da República a deixar claro que vetaria qualquer alteração à composição do CSMP? O primeiro-ministro não disse que a matéria era um não-assunto? A ministra da Justiça não rejeitou peremptoriamente essa alteração? Acreditar que todos estes responsáveis estão reféns do corporativismo sindical é no mínimo um disparate.

O que é que a história do tal político tem a ver com isto? Tudo! É que o CSMP é precisamente o órgão que pode pôr procuradores incómodos “na linha”; o órgão que, com elementos amigos e permeáveis, pode abrir portas a telefonemas estapafúrdios de pessoas que não sabem bem o que é o Estado de direito.

 Ainda na semana passada foi divulgado um Relatório do GRECO (Grupo de Estados contra a Corrupção) que deixa Portugal muito mal classificado por não cumprir recomendações essenciais. Entre essas recomendações contam-se, por exemplo, o fortalecimento do Conselho Superior da Magistratura, como órgão de garantia da independência dos juízes, que para o GRECO não deve ser composto por uma maioria de membros de designação política – como sucede actualmente – e o robustecimento dos mecanismos de protecção dos procuradores contra interferências indevidas vindas da sua hierarquia ou do conselho superior.

Até pode ser que aquelas propostas de alteração da composição do CSMP, contrárias às recomendações do GRECO, e, portanto, aparentemente enfraquecedoras do combate à corrupção, sejam bem-intencionadas. Mas então é preciso que haja clareza. Que se diga exactamente o que está mal, o que se quer corrigir e como. O chavão de travar o corporativismo não chega.

Ninguém é ingénuo. Hoje toda a gente sabe que há um projecto de populismo iliberal – um eufemismo para autoritarismo – que alastra na Europa e escolheu como primeiro alvo a independência do poder judicial. Não é só na Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia. Já chegou à Itália. Incomodado com a “rebeldia” dos tribunais, que abriram uma investigação contra o ministro do interior Matteo Salvini e condenaram membros do seu partido por actos fraudulentos, o governo já disse que quer alterar a forma de designação dos membros do conselho superior de magistratura e criar um sistema mais severo de punição de juízes e procuradores. 

Como na Polónia e na Hungria. É sempre pelos conselhos superiores que “mandam” nos juízes e procuradores que se começa. E há sempre jogos de sombras para disfarçar as verdadeiras intenções. Só não vê isto quem não quer ou anda muito distraído.

Sugerir correcção
Ler 9 comentários