Os novos capítulos de Sul, de Miguel Sousa Tavares

Quinze anos depois da primeira edição, o Clube do Autor reedita Sul, com novos textos e novas fotografias, que chega às livrarias no dia 5 de Julho. Eis um desses novos textos.

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Indian River

Indira Gandhi tinha sido assassinada pelos seus guardas sikhs e por toda a Índia estava desencadeada uma guerra civil entre hindus e sikhs. Parte do imenso puzzle religioso, ético e cultural de um país que é um continente e uma civilização à parte. Não há nada de comparável à Índia. Nem seria possível.

Dentro do autocarro, o vídeo projectado num aparelho de televisão passa um filme romântico de um insuportável mau gosto. Um a um, e sempre iguais, sucedem-se os vídeos, vomitados em condições de som e de imagem que fazem lembrar a pré -história da televisão. Este vídeo é o que justifica o preço e o título do autocarro: Special Video de Luxe. Mas o «luxo» acaba no vídeo, se é que aquilo era um luxo e não um interminável suplício, como a mim me parecia. Tudo o resto no autocarro - as moscas, o cheiro, a falta de espaço, os estofos, a suspensão - era simplesmente deplorável.

Para além da janela, um outro filme passa diante dos meus olhos. São aldeias feitas de casas de argamassa ou de simples cabanas de colmo, em cujos telhados os abutres pairam, formando cachos, como figos secando ao sol. Outras vezes são apenas tendas, instaladas à entrada das aldeias ou em plenos campos de lavoura, onde homens e animais se reúnem ao redor de uma fogueira acesa com o nascer do dia. São os mercados das aldeias com os seus vendedores sentados em cima das bancadas, em que vendem bananas, maçãs, amendoim torrado ou pneus para bicicletas, maços de cigarros, roupas em segunda mão, bilhetes de lotarias engordurados e abanadores para afastar as moscas. São as filas de camionetas desconjuntadas que chegam e partem, verdadeiros amontoados de ferros com caixotes de madeira por cima, com flores, amuletos e passageiros pendurados de todos os lados. São as lojecas escuras, sucedendo-se em fila como os stands da Feira Popular: a barbearia, a loja do sapateiro, a do vendedor de Coca-Cola e laranjadas, a oficina de bicicletas, o altar onde a estatueta de um deus estranho espera a adoração dos seus fiéis, iluminada por duas velas de cera. Uma verdadeira lava, larvar, de moscas volteia sobre tudo, poisando nas frutas, nos bolos secos, no nariz e na boca dos que dormem, indiferentes, deitados em tabuleiros de verga à porta dos cafés. Vorazes, persistentes, só elas se movem numa paisagem que parece inanimada há séculos. Acima das moscas, os abutres esperam, pachorrentos, que a sua hora chegue. Eu chegara a Delhi uns dias antes, sozinho e carregando, como o mais precioso dos tesouros, a minha máquina fotográfica e as suas duas objectivas - entre elas uma zoom de 300 mm, com a qual esperava poder fotografar à distância sem levantar problemas na confusão reinante das ruas. Em Janeiro, a Time proclamara a Índia como «o país do ano», Indira fora morta pelos seus guardas pessoais sikhs uma semana antes e a vingança não se fez esperar: em Delhi, a capital, a imensa maioria hindu queimava as casas e as lojas da minoria sikh - ou os próprios sikhs, se apanhados desprevenidos nas ruas. O recolher obrigatório tinha sido decretado em toda a capital e, logo ao chegar ao aeroporto, cerca da meia-noite, era impressionante o dispositivo militar. Gastei uma hora na alfândega só para conseguir fazer entrar a minha máquina fotográfica e as suas «telés», até que finalmente me vi cara a cara com o último funcionário. O homem olhou para mim, derreado por umas doze horas de voo e oito de fusos horários, mirou longamente o meu passaporte, como se fosse um objecto extraterrestre, tomou devida nota da minha indesejada condição de jornalista, e falou:

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- Portugueese, hem? Albuquerque?

Achei que ele estava a brincar comigo, e logo agora, que só sentia disposição para uma cama de hotel, fosse ela como fosse.
- What?
- Portugueese - Albuquerque?
- Yes, portuguese. But not Albuquerque: Tavares, Miguel.
- Ah, not Albuquerque! - e o tipo suspirou profundamente, um suspiro arrancado lá do fundo de alguns quinhentos e cinquenta anos de distância e de desconfiança e, ainda meio relutante, agarrou no carimbo e atestou no meu passaporte que eu tinha acabado de entrar na República da Índia.

E foi assim, na peugada do inesquecido Afonso de Albuquerque, que eu entrei na Índia e que, logo à saída do aeroporto, no autocarro que me transportava para o centro, tive a imagem de um país em estado de sítio. De duzentos em duzentos metros, uma patrulha de três soldados, aquecendo-se à roda de uma fogueira na berma da estrada, controlava todo o escasso trânsito que passava àquela hora da noite, obrigando o autocarro a parar e espreitando para dentro dele à procura de suspeitos de qualquer coisa.

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Cheguei ao hotel pelas duas da manhã, para constatar que já não havia serviço algum que servisse nem que fosse uma sanduíche para um destroço de Albuquerque, que já não comia desde que fora dia, algures sobre a Grécia. Obviamente, quis sair para ir à procura de qualquer coisa que estivesse aberta, nem que fosse tipo roulotte, das que servem bifanas à porta do Estádio de Alvalade em dias de jogo, mas o porteiro do hotel barrou-me a saída lembrando-me que estava em vigor o recolher obrigatório e que «Sahab might be shot on the streets at this time of the night». E Sahab não teve outra hipótese senão recolher à cama, com uma frugal ceia de pasta de dentes: amanhã, seja onde for que a gente esteja, é sempre outro dia.

Acordei com o incrível ruído da rua, que não consentia que alguém continuasse a dormir. Parecia que não apenas um novo dia tinha nascido, mas verdadeiramente que era o mundo todo que acabara de ser criado, ali, à porta do meu hotel. Corri a cortina da janela e, sem aviso, a Índia inteira entrou-me pelos olhos adentro. Uma babilónia de gente, de carros, motorizadas, animais soltos em deambulação incompreensível, circulavam na rua como se tivessem uma urgência inadiável de chegar a algum lado, e uma espessa poeira, filtrada pela luz ainda ténue do Sol da manhã nascente, pairava já, suspensa, sobre este caos efervescente. E deu-me uma ânsia de tudo: de acordar, de tomar um duche, de me vestir, de comer nem que fosse um talo de bambu, de sair para a rua a fotografar e a olhar para todos os lados como bêbedo, de me enfiar, sem mais demoras nem desperdício de tempo, no novo dia que nascia nessa Índia com que eu tanto sonhara ao longo da vida.

Apesar da urgência que me contaminara e agora me parecia possuir, à saída do hotel tive um momento de premonitória lucidez. Uns dez richshaws a motor (uma motorizada para o condutor, acoplada a uma cabina coberta que levaria dois passageiros) estacionavam em frente do hotel, aguardando clientes. Detive -me na escada a contemplar a cena e ocorreram-me três ideias que, nos dias seguintes, se revelariam decisivas: uma, que aquele era o melhor meio para circular pela cidade, à velocidade que eu quisesse, estacionando em todo o lado, dispondo de um guia para me orientar e podendo fotografar à vontade, encoberto na cabina, com a minha 300 mm; outra, que o grande negócio era agarrar num daqueles tipos e contratá-lo ao dia - saía mais barato e permitia criar laços de cumplicidade que poderiam vir a ser importantes; e, finalmente, que a grande jogada era ignorar os nove condutores hindus que ali estavam e ficar com o único sikh que se atrevera a sair com o seu rickhshaw para as ruas onde não era suposto os sikhs se aventurarem naqueles dias.

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E assim foi, afortunadamente. Nos cinco dias seguintes, passeei-me, conduzido pelo meu sikh, de barba e turbante como todos os sikhs, nos cantos daquela ora majestosa, ora caótica, cidade de Delhi, desde o Red Fort até aos templos hindus, e até uma mesquita muçulmana, onde ele tentou em vão dissuadir-me de ir e recusando-se terminantemente a acompanhar-me. E com razão: havia uma extensa alameda rodeada de árvores à saída da mesquita que conduzia até onde eu o tinha deixado com o seu rickshaw. Comecei a caminhar despreocupadamente, meditando naquela confusão de país onde tantas religiões se sobrepõem e convivem - a maior parte das vezes mal, outras bem -, quando uma pedra sobrevoou a sebe do caminho e caiu aos meus pés. Não liguei importância e continuei a cami nhar. Mas logo caiu uma segunda mais próxima e uma terceira, que me atingiu nas costas. Aí, tive de me render à evidência: estava a ser apedrejado, como infiel. As pedras começaram a cair, cada vez mais abundantes e certeiras, e fui forçado a despir-me da dignidade afectada: protegi as máquinas o melhor que pude e desatei a correr os duzentos metros em tempo olímpico até onde o meu avisado condutor já me esperava com o motor do rickshaw a trabalhar e a porta aberta, e foi só arrancar dali para fora.

Nos dois primeiros dias, armado em viajante, aceitei as sugestões do guia para irmos almoçar a restaurantes escolhidos por ele e sempre propriedade de alguém da família. Ao terceiro dia, como era inevitável que acontecesse, os intestinos entraram em erupção vulcânica que nenhuma dose reforçada de Ultra Levure parecia conseguir dominar. Então, mudei de hábitos e, contra os sagrados mandamentos da minha particular religião, passei a almoçar sempre no McDonnald’s de Connaught Place, a praça central de Delhi, onde me rendi, conformado, à familiaridade deprimente de delícias como o Big Mac com bacon. Para meu grande espanto, o meu amigo sikh pareceu adorar a mudança de hábitos e, não fosse o medo de o susceptibilizar, teria sacado da máquina para o fotografar escorrendo ketchup pelas barbas e mostarda pelo bigode, sem nunca, todavia, perder aquele ar de terrível guerreiro ou facínora que a lenda e as fotografias atribuem aos da sua espécie e religião.

Tendo conhecido e sido bem aceite pela sua comunidade, que me levou a visitar nos campos de internamento onde o Governo os metera à pressa depois de os hindus os terem começado a caçar e matar como represália pelo assassinato de Indira Gandhi, o meu guia achou que eu estava pronto para o passo seguinte: convidou-me para jantar em sua casa, assim que o recolher obrigatório foi levantado (no dia seguinte seria reposto em vigor, contados os mortos da violência intercomunitária nocturna). Saímos da cidade ao final do dia, em direcção aos arredores, onde ele morava. Aos poucos, as ruas e avenidas congestionadas de Delhi, o seu trânsito infernal, o seu amontoado de gente, animais e acontecimentos ao longo dos passeios foram ficando para trás, à medida que nos embrenhávamos por estreitas estradas semidesertas, agora ladeadas por campos e esparsas casas. A escuridão já envolvia o interior da cabina do rickshaw onde eu viajava, quando, ao virar de uma esquina, outro rickshaw apareceu desembestado em nossa direcção, coisa aliás frequente no dia-a-dia local: uma guinada súbita para a direita do meu guia, uns gritos trocados à passagem entre ele e o outro condutor.

Evitado o acidente, o meu sikh trava a fundo e sai disparado em direcção ao outro veículo, que também travara. Nas sombras da noite, fracamente iluminada por um luar rompendo através das árvores, vejo as duas figuras que se envolvem num corpo-a-corpo furioso em plena estrada deserta. Sentindo a tragédia iminente, tive o mais básico dos reflexos: sacar a máquina do estojo e tentar montar o flash a tempo de fazer uma fotografia que para toda a eternidade testemunhasse essa violência à flor da pele, essa frágil importância que a vida humana parece ter na Índia. Mas não fui a tempo, julgo que felizmente: um grito abafado, seguido da sombra de um vulto a tombar lentamente, indicaram-me que a luta tinha chegado ao fim e que havia um vencedor. Aí, assaltou-me um pensamento: e se fosse o outro? Mas não foi.

O meu condutor sikh emergiu da escuridão, guardando furtivamente qualquer coisa entre as vestes: o curto punhal que dizem que nunca abandona um sikh. Estupidamente, perguntei-lhe o que tinha acontecido ao outro, ao que ele resmungou qualquer coisa como não ser da minha conta. Arrancou e tranquilamente retomámos o caminho até à casa dele. Aí, sentámo -nos os dois, mais um cunhado e um irmão, entre as almofadas no chão da sala e as mulheres da casa serviram-nos o jantar. Já nem me lembro o que comemos nem de que falámos. Só conseguia pensar que estava a jantar, como se nada fosse, em casa de um homem que provavelmente acabara de matar outro, à minha frente. «Em Roma, sê romano...» Pois, e na Índia?

No dia seguinte, quando ia a sair do hotel e procurava o meu condutor sikh, fui abordado por dois hindus, que me quiseram convencer a sair num dos rickshaws deles. Expliquei -lhes que tinha já um condutor contratado ao dia, mas eles responderam que o sikh não viria.


- Porquê? Como sabem que ele não vem? - perguntei.
- The sikh is sick - respondeu um deles.
- I know is sikh! So what? - insisti.
- No, the sikh is sick!
- Ah! O meu sikh estava doente... Havia ali qualquer coisa que não soava bem e achei melhor não fazer mais perguntas e prescindir dos  serviços deles.

Sem ter sequer um guia com quem conversar, dei comigo a sentir-me demasiadamente só na vastidão da Índia e resolvi ir ao encontro dela. No estado do Uttar Pradesh havia uma disputa eleitoral que o Indian Times reputava de decisiva. Resolvi ir até lá e ver ao vivo uma campanha eleitoral local, na maior democracia do mundo. Mas quando cheguei a Victoria Station, antecipando o gozo de uma viagem durante todo dia e toda a noite num desses míticos comboios da Índia, que os ingleses tinham visionado e os marajás reproduzido em pequena escala nos seus potentados - às vezes com carris de ouro maciço -, fui gentilmente informado de que o comboio para o Uttar Pradesh, anunciado para as onze da manhã desse dia, estava com um ligeiro atraso.

- What delay?
- One, maybee two days, Sahab.

Restou-me a alternativa de me dirigir à estação de autocarros e escolher entre uma das três opções disponíveis: Special, Vídeo e Special Video de Luxe. Avisadamente, escolhi a última.

Dentro do autocarro, o «assistente de bordo» muda a cassete do filme, que terminou com um longo beijo apaixonado dos actores principais, e anuncia o novo sucesso que vai seguir-se: Amor Fatal. Na berma da estrada, enrolados em decrépi tas mantas que outrora tiveram, talvez, uma cor definida, homens e velhos dormem na poeira, sem pressa aparente de chegar a lugar algum. De noite, acendem fogueiras, juntam-se em grupos de dois e três e ficam conversando, assistindo ao espectáculo que melhor conhecem: ver passar o tempo. Aqui e além, uma vaca desgarrada, sem dono nem destino, protegida dos deuses e indiferente à sorte dos homens, atravessa a estrada e entra pelos campos semeados. Ou então um camelo passa arrastando uma carroça de velhos pneus que foram Firestone ou Goodyear, antes de serem apenas uma carga presa por uma corda à boca deste animal de cara estúpida e dócil. Nunca entendi bem a estranha relação entre camelo e o subdesenvolvimento. Serão os povos subdesenvolvidos os únicos que aprenderam a dar ao camelo alguma utilidade, para além de estar fechado numa cerca do jardim zoológico, ou será o camelo, com o seu ar conformado e triste, que torna os povos subdesenvolvidos?

Durante quinze horas, o autocarro prosseguiu, imperturbável e milagrosamente, a sua marcha, projectando sem cessar imagens de um mundo em technicolor que os passageiros contemplam de olhos esbugalhados, enquanto vão roendo pedaços de comida negra guardada em lenços de assoar. Ao fim de três horas de viagem, o condutor tinha parado o autocarro junto a umas tabancas na berma da estrada e todos saíram para desentorpecer as pernas e abastecer-se de comida. Eu estava morto de fome, mas, quando olhei para aquelas panelas fumegantes, onde um espesso molho tanto podia encobrir macaco guisado como escaravelhos estufados, e lembrando-me dos apertos sofridos com a comida das tascas de família do meu ex-guia sikh (paz à sua alma?), achei melhor passar adiante e esperar pela próxima paragem.

Realmente voltámos a parar, outras três horas mais tarde, mas de novo na mesma espécie de tabancas, vendendo a mesma espécie de preocupante comida. Mas havia bananas e a solução foi comprar umas três dúzias. Passei as doze horas seguintes a comer bananas, para grande admiração do meu companheiro de banco, que, depois de ter visto recusada a comida que desenrolara de um lenço que deveria viajar com ele há séculos e que generosamente me oferecera, comentou, aí pela décima terceira banana que me viu engolir: «Sahab like very much banana!» E, não só porque era noite, entretanto, mas também por diversas outras razões, Sahab fechou os olhos, com a cabeça encostada ao estojo da máquina fotográfica, dos documentos e do dinheiro, e tentou, em vão, adormecer.

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Em cada curva da estrada, em cada ultrapassagem, cada passageiro jogava o seu destino, suspenso das mãos do condutor e do favor dos deuses. De meio em meio minuto, uma buzinadela estridente e um guinchar desesperado de travões e ferros evitavam, no último instante, o atropelamento mortal de uma vaca, um ciclista ou um peão. Ao longo da viagem, passámos, sucessivamente, por três camionetas despistadas, achatadas na berma da estrada, torcidas numa confusa escultura de ferros, sangue, pedaços de roupas e carne humana, e aquele silêncio inconfundível da morte súbita. Dizimados pelas moscas e pelo calor, entorpecidos pelo cansaço e entontecidos pelos gritos estridentes da heroína do vídeo, os passageiros já nem se dignavam impressionar-se: apenas um olhar fugidio e curioso. Em país algum vi que a morte valesse tão pouco.

Estava quase a conseguir adormecer, quando mais um inconfundível chiar de travões do Special Video de Luxe me despertou por completo, novamente. Achei que era nova tasca de familiares ou amigos do condutor e nem sequer me dignei olhar pela janela. Mas vinha um outro som lá de fora, uma espécie de cântico surdo, arrastado, como uma procissão que se dirigisse a algum lado. Olhei pela janela e vi que tínhamos parado numa aldeia, que parecia toda desperta, apesar de ser já madrugada. Não havia luz eléctrica, apenas as luzes esfumadas de lamparinas de azeite, candeeiros de petróleo e velas ardendo nos balcões das lojas e casas, que a custo devassavam a escuridão da noite, e uma nuvem de poeira vermelha que envolvia toda a cena, como um manto vegetal. E, na penumbra e na poeira, uma multidão silenciosa caminhava lentamente, parecendo dirigir-se para algum local que os atraía sem remissão. «One hour stop», anunciou o condutor, falando em inglês só para mim, pois já não havia mais nenhum estrangeiro a bordo do Special Video de Luxe. A minha curiosidade foi mais forte que tudo o resto: saí também.

Era inútil procurar aonde ir: havia uma corrente de gente, como a de um rio, que deslizava em direcção a alguma coisa e eu, simplesmente, juntei-me a ela e deixei-me ir, escutando aquele cântico abafado que vinha não sei donde. Percebi, a certa altura, que entrávamos numa espécie de gruta, um templo enterrado - seria hindu, budista, ó santa ignorância!? - e, antes de conseguir pensar se estrangeiros e infiéis seriam ali aceites, já estava lá dentro e continuava a deslizar no meio da corrente que me empurrava. Agora, todos cantavam à minha roda, caminhando como sonâmbulos ou de rosto em alvo, como que em transe, os olhos injectados de vermelho brilhando na penumbra da gruta. Achei por bem adoptar um passo cadenciado e um ar místico, de olhos cravados no chão, olhando disfarçadamente para os lados, de vez em quando: fosse qual fosse o acto solene, a liturgia ou a religião, eu acabara de me tornar num convertido. Aliás, já nem havia por onde recuar ou voltar atrás: a multidão continuava a empurrar-me e para a frente é que era o caminho.

Não sei dizer, sinceramente, quanto tempo durou aquela via-sacra nas profundezas de uma gruta sagrada de uma qualquer aldeia de que nunca soube o nome e venerando um qualquer deus de uma religião que nunca soube qual era. Sim, cheirava a incenso e a calor humano e à esterina das velas que ardiam ao longo do caminho em pequenos altares escavados na parede, com flores e imagens indecifráveis. Parecia caminhar dentro de um novelo, do enredo de um filme, e cheguei a acreditar que tinha apenas adormecido no autocarro e que estava a sonhar. A certa altura comecei a ter medo de não dar com a saída, medo de que não houvesse saída, de que a saída fosse caminhar assim até à eternidade, até algum nirvana desconhecido onde não haveria autocarro algum à minha espera nem regresso ao mundo que fora o meu, antes de ter chegado à Índia. Mas algures, no fim do caminho, havia uma luz e eu caminhei em direcção a ela e saí do pesadelo.

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Onde estou não é um país, nem uma nação, nem sequer, como dizem, um subcontinente. É a Índia. «Olhe, eu estou há quase dois anos na Índia e todos os meses julgo ter, finalmente, compreendido este país. Mas no mês seguinte concluo que, afinal, já não percebo nada outra vez!» Quem assim me fala é um português, confuso, como todos os ocidentais, por este país onde o vendedor de jornais da esquina, sempre tão simpático, é capaz de se juntar a uma multidão desvairada que queima sikhs, regando-os com gasolina, como ele viu fazer na rua onde mora.

O trânsito de Delhi deu-lhe volta à cabeça. Aquela maré de rickshaws, de scooters, de velhos Morris modelo anos cinquenta, rebaptizados Ambassador, de carroças puxadas a camelos, de vacas sagradas tresmalhadas, e, para além de todos eles, os autocarros desvairados que não travam, só buzinam, deixaram-no atarantado. Mas o homem não esteve pelos ajustes. Velho africanista, habituado a desenrascar-se nestas latitudes, mandou vir do Japão um jipe especialmente preparado, com pára-choques e guarda-lamas reforçados, e agora investe sobre os cruzamentos, onde desagua, anárquica, toda aquela molhada de veículos, e também ele não pára: buzina e grita palavrões em português vernáculo. O instinto de Afonso de Albuquerque renasceu-lhe, inteiro.

Mas quantas Índias existirão neste imenso país onde vivem setecentos milhões de almas - um sexto da humanidade? A Índia da Nova Delhi, com as suas belas e largas avenidas, cercadas de extensos parques à inglesa, conduzindo à Indian Gate, espécie de Arco do Triunfo, por onde há trinta e sete anos Mountbatten desfilou, despedindo-se do Império em nome de todos os ingleses? Ou a Índia da velha Delhi, de Calcutá e Bombaim, cidades onde se sente, até no ar que não se respira, que significa, de facto, ser-se um entre setecentos milhões de outros? A Índia das planícies centrais banhadas pelo Indo e pelo Ganges; de Simla, a cidade imperial de Verão, erguida nos bordos dos desfiladeiros do Himalaia; das florestas densas do Assam, que a mitologia deixou infestadas de cobras e tigres; do deserto do Rajasthan e da sua feira anual de camelos, ou a das suaves praias de Goa, recortadas num fundo de igrejas barrocas? A Índia dos souks miseráveis, estranho espectáculo de cores, ruídos, cheiros, olhos esbugalhados, mãos estendidas, legumes entornados no chão - onde crescem livremente crianças, bezerros e macacos, paredes-meias com a cólera, a febre-amarela, a lepra? Ou a Índia dos belos palácios adormecidos, como o Amber Palace, em Jaipur, onde o marajá recebia a sua esposa favorita em salas com paredes forradas de mármore cinzento e espelhos de cristal, enquanto as outras onze maranis esperavam, nos seus aposentos separados, o privilégio de poderem distrair das fadigas da guerra e da caça o senhor dos Rajputs? A Índia dos milhares de templos erguidos a Krishna, a Buda ou a Alá, ou simplesmente à memória da esposa morta, como esse cristal branco que é o Taj Mahal, tão excessivo na sua beleza que chega a parecer frágil, erguido pelo imperador mogul Shah Jahan para servir de túmulo à sua amada esposa Murntaz Mahal («O Ornamento do Palácio»)?

«Para se conhecer alguma coisa sobre a Índia, a primeira coisa a fazer é esvaziar a cabeça de todas as ideias preconcebidas, de tudo o que se ouviu dizer ou que se leu. A Índia é diferente e não há classificações formais que se lhe possam aplicar.» Ninguém melhor do que Indira Gandhi podia falar assim. Ela, a quem coube a sorte de governar durante dezasseis anos um país com dezenas de raças e tribos, centenas de religiões e mil seiscentas e cinquenta e duas línguas faladas, das quais quinze são reconhecidas oficialmente e mais o inglês, utilizado para fins oficiais. Um continente periodicamente sacudido por conflitos entre povos, castas e sobretudo religiões.

O que mais surpreende quando se pensa no caos social e económico da Índia é constatar que ela nasceu independente, depois de uma longa luta pela libertação, para ser um país democrático. E a Índia continua a ser uma democracia. Com limitações, é certo. Minada pela corrupção, pelo caciquismo, pelas disputas pessoais e regionais. Mas uma democracia. A maior do mundo. Como escreveu Daniel Moynihan, que foi embaixador dos Estados Unidos em Delhi, «um em cada dois seres humanos que no mundo inteiro vivem numa sociedade onde a liberdade e os valores fundamentais do homem são respeitados vive na Índia».

Porém, nenhum país minimamente evoluído pode viver no estado de porcaria em que se vive na Índia.

A porcaria é realmente o que, antes de mais, choca um ocidental à sua chegada a este país, onde tudo é diferente. É difícil descrever a porcaria e a falta de higiene na Índia. Há ruas e passeios onde é simplesmente impossível andar, a não ser chapinhando em toda a espécie de dejectos de homens e animais. Macacos, abutres, vacas, búfalos, zebus, camelos, burros e elefantes vivem no centro das cidades num estado de promiscuidade e decadência que nem a selva lhes permite - e que nada tem a ver com uma idílica comunhão com a natureza. Não admira que os indianos morram dizimados por doenças já extintas há muito em quase todo o mundo ou que dezenas de leprosos choquem com os turistas em Connaught Place, a praça central de Delhi, para pedirem uma esmola.

Depois, há as multidões que ou se acotovelam e se atropelam numa luta frenética para chegarem não se percebe aonde ou dormem sem pressa nas bermas das estradas ou nos jardins públicos das cidades, no chão dos aeroportos, à porta dos tribunais e das repartições públicas, em toda a parte onde lhes dá o sono. Que faz essa gente toda? De que viverão? Rezam as estatísticas que oitenta e cinco por cento da população indiana vive da agricultura. E a das cidades? Tanto quanto me apercebi, os que estão activos nas cidades vivem sobretudo do comércio ou de conduzir táxis e ricksbaws. Tudo se compra e se vende nas cidades. Em especial se o freguês for estrangeiro. Em cada cem metros percorridos, é infalivelmente assaltado, seduzido, implorado, puxado por outros tantos vendedores ou pedintes. «Sahab, quer comprar jóias? Sahab, quer conhecer a cidade? Sahab, quer comprar o verdadeiro mármore de Agra, esculturas de marfim autêntico, prata que nunca desaparece? Sahab quer engraxar os sapatos?» (Se não quer, engraxa na mesma, pois os engraxadores vão metendo pomada branca nos sapatos, mesmo com o cliente em andamento.) Ou então, mais simplesmente, mulheres com filhos adormecidos ao colo e crianças roubadas a uma história de Dickens estendem a mão em súplica angustiante: «Sahab bakshish!»

A Índia é um país incerto, diferente, distante de todos os outros, por vezes revoltante, outras vezes comovente. E uma democracia. Por ele lutaram ao longo dos tempos todos os povos da Ásia, ultrapassando penosamente a barreira dos Himalaias para invadir as suas vastas planícies centrais. Alexandre parou aqui a sua alucinada perseguição aos persas e aos outros mais a oriente, e portugueses, franceses e ingleses, todos sonharam fazer da Índia o seu império mitológico.

No autocarro Special Video de Luxe em que iniciei a minha viagem pela Índia, os únicos brancos que lá iam, além de mim, era um velho casal de ingleses que fez a primeira parte do percurso e que tinha embarcado acreditando mesmo que seria um autocarro de luxo. Dirigiam-se a Hyderabad para visitar o filho que lá trabalhava. Quando o autocarro parou numa dessas versões indianas de fast food à beira da estrada, os ingleses ficaram na berma do caminho, olhando para sítio nenhum e para toda a parte, com um ar perdido. Não resisti a perguntar ao velho inglês qual a razão profunda para que a Inglaterra não quisesse perder a Índia. «Prestige, I think», respondeu ele com a mesma naturalidade como se lhe tivesse perguntado se gostava de chá.

Sim, o prestígio de governar a Índia. O fascínio dos seus espaços sem fim, a aventura da caçada aos tigres, o esplendor de um jantar no palácio do marajá, o mistério do encantador de serpentes. Ou seria apenas a velha ambição do homem branco comandar e governar os outros povos - «o fardo do homem branco», como escreveu Kiplling? Mas governar, Senhor, a Índia!?

Dezembro 1984

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