Sobre a Proposta de Lei 205/XIII/4.ª GOV – Regime do Acesso ao Direito

Tal como está, a Proposta de Lei do Governo que aprova o novo regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais deve ser rejeitada.

As Leis são melhores ou piores consoante a maior ou menor bondade do fim que visam atingir conjugado com a eficácia, equilíbrio e respeito pelos valores fundamentais do Direito na obtenção desse resultado.

Pelo que uma Lei que aprova o regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais, que se destina primacialmente a evitar que a falta de recursos económicos seja impedimento a que um qualquer cidadão possa exercer os seus direitos, deve ser apreciada essencialmente sob este prisma. É este o seu escopo fundamental. Todos os demais interesses em jogo, mais ou menos corporativos, são-lhe necessariamente acessórios.

A Proposta de Lei que foi a Conselho de Ministros com o n.º Pº393/2017 estava bem intencionada; visava “... possibilitar o alargamento da base subjectiva (leia-se o número de beneficiários) de protecção jurídica sem fazer perigar o equilíbrio e a sustentabilidade do sistema (...)”, prevendo-se então quatro escalões, com apoio distribuído entre os 100% e os 25% de acordo com o resultado obtido por aplicação do novo regime que estabelece as regras uniformes de verificação da situação de insuficiência económica – DL 120/2018 de 27/12.

Sucede que logo a 29 de Janeiro de 2009, em parecer remetido para o Conselho de Ministros, a Ordem dos Advogados alertou para duas situações distintas: que não era garantido que do escalonamento proposto resultasse um efectivo alargamento da base subjectiva de protecção (para tal era preciso comparar os resultados da fórmula de cálculo futura, com os da fórmula de cálculo actual); por outro lado, esse escalonamento não seria solução para um dos maiores flagelos da justiça actual: a excessiva onerosidade das custas judiciais que afasta os cidadãos dos tribunais.

Curiosamente, a Proposta de Lei que acaba por sair do Conselho de Ministros com o n.º 205/XIII e que está no Parlamento para aprovação, ainda que mantenha (no preâmbulo) essa boa intenção (alargamento do número de beneficiários), faz uma transformação radical no seu ponto mais fundamental: retira a definição da situação de insuficiência económica da Lei e passa a remetê-la para “definição futura em decreto regulamentar”! Ou seja: o seu objectivo primacial é remetido para um futuro e incerto “decreto regulamentar”; o que é o mesmo que dizer que a definição do grau de insuficiência económica fica por definir e delimitar.

Salvo melhor opinião, este pequeno pormenor (que é, aliás, o maior de todos eles) demonstra a necessidade do Governo definir de uma vez por todas a “base subjectiva de protecção” previamente à aprovação da Proposta de Lei, obrigando-o a vincular-se. O Governo deve tornar públicos os estudos económicos que subjazem à fixação do conceito. Sob pena de se estar a aprovar algo de tão indefinível que não faz sentido sequer ser aprovado.   

Sem a definição deste ponto concreto, esta Proposta de Lei deve ser rejeitada. 

Curiosamente, este ponto fundamental passou despercebido aos muitos comentários e tentativas de fazer colar ao actual Conselho Geral da Ordem dos Advogados os pontos negativos da Proposta de Lei. No entanto, há que dizer, esclarecendo, que esta Proposta de Lei não coincide com o pensamento do actual Conselho Geral, o qual coincide sim com o parecer já referido, datado de 29/01/2019 e logo tornado público

Pelo que, como aí desde logo se referiu, a entrada dos Solicitadores no sistema do Acesso ao Direito teve a discordância e o voto contra do Conselho Geral – único voto contra, entre todos os membros do grupo de trabalho. Ainda que os solicitadores já constassem da Lei do Acesso ao Direito há muito (cfr. Dec-Lei 87/-B/87 de 29/12; Lei 30-E/2000 de 20/12; e a Lei 34/2004 de 29/07) e não obstante essa entrada apenas ocorrer quando haja escolha expressa por parte do beneficiário, condicionada à competência legal dos solicitadores.

A Ordem também alertou para que o reembolso (e não “confisco”) do sistema relativamente aos beneficiários que venham a ganhar meios de subsistência ao longo do processo, que já existia na lei anterior, devesse ser limitado às situações em que haja um efectivo enriquecimento. O que não sucede na maior parte das situações indemnizatórias, as quais apenas tendem a tornar o dano indemne.

Invocou ainda a mais do que provável inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do art.º 18.º, relativamente à possibilidade de denegação da apreciação da pretensão por manifesta simplicidade.

No entanto, defendeu as vantagens da existência de uma consulta prévia para a avaliação da pretensão; destinada essencialmente a evitar a utilização abusiva do sistema (ex: beneficiários com centenas de nomeações de patrono); sem que daí resulte atraso sensível no procedimento: porque é a Ordem que faz a nomeação para a consulta prévia e posteriormente para propor a acção – situação que não se confunde com os atrasos da Segurança Social.

Defendeu ainda a formação contínua para todos os Advogados; porque entende que a formação tem mais benefícios do que inconvenientes; é um dever estatutário dos advogados e da sua Ordem – art.º 197 do EOA. Apesar da formação ser da competência exclusiva da Ordem, esta não pode fechar a porta a colaborações com outras entidades (universidades, associações de reconhecido mérito, etc.), tal como sempre aconteceu, nomeadamente com o CEJ: note-se que o Conselho Pedagógico do CEJ conta com um representante da OA; o CEJ acolhe inúmeros advogados nos seus júris para a selecção de novos candidatos. E, que se saiba, o CEJ não sai menorizado desta colaboração. Porquê o contrário?

Relativamente à tabela de honorários, estagnada desde 2004, com uma estrutura desactualizada e complexa, está criado um grupo de trabalho pelo MJ para a sua actualização no qual a OA tem um representante indicado. A negociação não está concluída nem ultrapassadas as metas estabelecidas.              

O previsto “Observatório do Sistema” destina-se apenas a aferir a qualidade geral do sistema; não é um órgão disciplinar. Aliás, no art.º 48.º (revogado em 2007) da lei actual constava algo de muito semelhante: a “Comissão de Acompanhamento”. Sem brado nem consequências nefastas na altura.

Por fim, é curioso verificar que as críticas que têm sido agora apontadas pelas mais diversas vozes à proposta de Lei em causa, na sua maioria, já constavam escritas, desde 29/01/2019, no parecer remetido pela Ordem ao Conselho de Ministros. É ler.

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