O silêncio dos inocentes

O silêncio dos inocentes permitiu que esta nova geração seja a primeira a não poder almejar um melhor futuro do que o da anterior e também a viver numa sociedade onde condenamos quem foge da miséria e os que os salvam, deixando impunes os que lançam as bombas.

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Não é fácil, nos dias de hoje, fazer uma destrinça correcta e rigorosa daquilo que pode ser bem ou mal aceite pela sociedade. Não podemos ter por certo muito do que até hoje se nos apresentava como garantido, palpável e intrínseco ao quotidiano. Não raras vezes, é-nos impedido o ímpeto de sonhar para além da semana que vem e das despesas para este mês. É até possível que haja vontade, por parte de muitos, para que paremos definitivamente de sonhar. Não é de uma realidade digital ou em forma de distopia aquela de que falo, mas da nossa, aquela em que vivemos todos os dias em forma de carne e osso.

Muitas das transformações que operam sistematicamente nos correntes dias são proporcionadas pelo silêncio dos inocentes. Falo dos dias correntes como poderia falar das correntes do Mediterrâneo. Os que lá afundam não podem falar, provavelmente não o podiam já há muitos anos. No entanto, há sempre quem se organize e tente fazer o possível quando muitos não fazem sequer o que podem. Miguel Duarte é acusado de auxílio à imigração ilegal no Mediterrâneo numa nova tentativa de algumas autoridades para silenciar a sangria humana que ali perece sem que os governos tentem sequer fazer algo em relação isso. Bem sabemos que o combate prioritário é aquele que vai ao âmago da questão, ou seja, a guerra. Esta guerra no Médio Oriente que se eterniza por conveniência. Contudo, enquanto o problema permanece são necessários mais Miguéis para que a vida humana não seja desperdiçada numa tentativa desesperada de encontrar humanidade. Os governos calam-se, o silêncio é apenas interrompido com uma ou outra declaração de intenções. Não precisamos de declarações, mas de acções concretas que apoiem aqueles que vão rompendo a surdina em que vivemos. É preciso fazer mais, muito mais.

Em igual surdina vivem as crianças que se confundem com a terra nas planícies da Síria. Muitas já não falam, não vêem e não andam para que outros inocentes possam andar, falar, comprar e vender, viver e não crescer com receio da morte. No fim de contas, é suposto sentirmo-nos eternos até constatarmos o decrepitar do nosso próprio corpo.

O silêncio dos inocentes mata. As bombas caem com alvoroço, mas o silêncio mata com cinismo. Vemos o mundo a mudar e morrer, mas há quem se cale. Sempre houve. A escravatura fez-se em silêncio durante milénios bem como pela calada se lançou o terror fascista e a guerra pela Europa. Sempre que os senhores do mundo decidem desferir-nos mais uma machadada, não o fazem com alarido nem erguendo bandeiras. Vêm de mansinho, a murmurar, até culminarem com grande estrondo satisfazendo as suas pretensões e caprichos.

Nunca estivemos tão calados. Falamos uns com os outros, trocamos mensagens e fotografias, enviamos vídeos e emojis, mas calamo-nos sempre quando se trata de fazer algo com consequência. Não basta gritar e partilhar indignação. A indignação sozinha é muda e um desperdício de energia. O silêncio dos inocentes não quer mostrar que todos os dias existe alguém que se consegue apropriar dos recursos de todos para o benefício de alguns.

O curioso é que não me lembro de tempos tão barulhentos como aqueles em que vivemos hoje. Há sempre algo para dizer, comentar, vender ou falar, desconstruir ou baralhar. O som é de tal maneira alto e confuso que nos sentamos no sofá com a certeza de que haverá alguma, no meio de tantas vozes, que irá ecoar pela rua fora na tentativa de resolver os nossos problemas. E calamo-nos. E os problemas permanecem e agravam-se embalados pelo som do silêncio do Paul Simon.

Este silêncio não é só um título de um grande filme com também pode rotular-nos enquanto sociedade, como aquela que se cala quando milhões de seres humanos vivem na pobreza. O silêncio dos inocentes permitiu que esta nova geração seja a primeira a não poder almejar um melhor futuro do que o da anterior e também a viver numa sociedade onde condenamos quem foge da miséria e os que os salvam, deixando impunes os que lançam as bombas. Afinal, pode acontecer que não sejamos tão inocentes assim.

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