O cavalo do inglês

Se nada for feito, acontecerá com o ensino superior português o mesmo que aconteceu com o cavalo do inglês: quando estava quase a habituar-se a viver sem comer, morreu.

Uma história popular, cuja origem se perdeu, conta que um inglês tinha um cavalo que se matava a trabalhar, mas que lhe saía caro porque comia muita ração. Para economizar, o inglês deixou de o alimentar e, embora o cavalo fosse ficando cada vez mais macilento, o dono andava satisfeito porque lá ia economizando uns dinheiritos. Quando, passados uns tempos, o cavalo morreu, o inglês terá exclamado com ar surpreso: “Logo agora que o cavalo já estava quase habituado a não comer, morreu!”

Esta história, de todos conhecida, reflecte bem a situação que se tem vivido nos últimos 15 anos com o sistema de ensino superior português. Apesar do significativo e eficaz esforço que foi feito para desenvolver a ciência em Portugal, o financiamento do subsistema de ensino superior (excluindo C&T) tem sido sistematicamente reduzido, de forma significativa e persistente, por sucessivos governos, de todos os quadrantes políticos. Nos últimos 15 anos, o financiamento das universidades, embora se tenha mantido aproximadamente constante em termos de valores nominais, reduziu-se efectivamente em mais de 30%, quando se toma em linha de conta não só o financiamento recebido do Orçamento Geral do Estado, mas também a evolução dos salários e das responsabilidades com a Caixa Geral de Aposentações e a Segurança Social. Se todo o Estado tivesse sofrido uma redução equivalente, o país estaria hoje com um superavit seguramente superior a 10% do PIB.

Esta situação aberrante pode ser verificada pelos números oficiais, divulgados pela OCDE, no seu último relatório Education at a Glance, de 2018. Como se pode ver pelo extracto anexo de uma tabela publicada nesse documento, que inclui alguns países com os quais competimos directamente, Portugal investe muito menos em cada aluno do ensino superior do que a maioria dos países da União Europeia (os valores da tabela foram convertidos em euros, usando o índice da paridade do poder de compra). Cada aluno do ensino superior custa ao Estado português pouco mais de metade do valor médio equivalente nos 19 países do Euro.

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Paradoxalmente, Portugal investe menos num aluno do ensino superior do que num aluno do ensino básico (o rácio é 88%), uma situação quase sem paralelo na Europa e nos países da OCDE. Esta é uma situação aberrante porque o ensino superior tem um custo mais elevado por aluno, dado que são necessários laboratórios, instalações experimentais, equipamentos e consumíveis em áreas com exigências específicas, tais como a engenharia, a medicina, a farmácia ou a veterinária. Parte dos custos com instalações experimentais acabam por ser suportados pelo investimento feito em ciência que, porém, é também muito limitado e devia ser integralmente dedicado à investigação, desenvolvimento e inovação.

Paradoxalmente, o sistema adaptou-se aos sucessivos cortes e aumentos de custos introduzidos nos últimos 15 anos, tornando-se mais eficiente, reduzindo os custos de operação e procurando novas fontes de financiamento, tais como a leccionação de cursos para profissionais e executivos, contratos com patrocinadores privados e recurso a pessoal não permanente. Porém, e salvo raras excepções, o investimento em novas instalações, laboratórios e equipamentos caiu praticamente para zero, excepto para as universidades que têm conseguido usar eficazmente os fundos estruturais. Lamentavelmente, isso não inclui nem as universidades da região de Lisboa, onde os fundos estruturais são reduzidos e têm uma baixa taxa de financiamento, nem outras universidades e instituições que, por uma razão ou outra, não conseguem usar eficazmente os fundos estruturais.

O último ano em que o Instituto Superior Técnico teve acesso a um programa específico de investimento (o PIDDAC – Programa de Investimento e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central) foi 2009. Desde então, a sua capacidade de investimento reduziu-se praticamente a zero, face aos sucessivos cortes e reduções orçamentais. Nesta legislatura, através do “Contrato de Confiança” que assinou com as universidades, o Governo comprometeu-se a manter o financiamento existente, uma medida que se revelou positiva porque garantiu alguma estabilidade, mas que não contribuiu para resolver o problema da falta de capacidade de investimento. Diversas medidas avulsas, aprovadas pela Assembleia da República, vieram piorar ainda mais uma situação já dramática.

Apesar da sistemática redução do financiamento, o sistema de ensino superior manteve uma elevada qualidade, continuando a assegurar uma formação de excelente nível aos nossos alunos. Diversas instituições de ensino superior portuguesas mantêm boas posições nos rankings internacionais, em áreas tão diversas como a engenharia, a economia e a gestão. O IST, por exemplo, aparece sistematicamente entre as 20 melhores escolas de engenharia europeias. Poder-se-á pensar, tal como o inglês, que afinal o sistema se adaptou à diminuição do financiamento e que tudo correrá bem daqui para a frente. Mas isso não é verdade.

O ensino superior é altamente competitivo, a nível internacional. As grandes escolas europeias, de áreas tão diversas como a engenharia, a medicina, a economia e a gestão, competem ferozmente pelos alunos mais talentosos da Europa e do mundo. Cada vez mais jovens portugueses escolhem estudar em universidades estrangeiras, especialmente no norte da Europa, onde os custos são baixos, a qualidade das instalações elevada e as perspectivas de emprego excelentes. Dezenas de alunos que são aceites no IST, muitos deles com médias muito altas e com acesso aos cursos mais exigentes e competitivos, acabam por não ingressar no Técnico porque escolhem outras universidades, como Delft, na Holanda, KTH, na Suécia, TU Munique, na Alemanha, ou EPFL, na Suíça. Todas estas escolas têm orçamentos que são múltiplos do orçamento do IST. Por exemplo, o orçamento da TU Munique é muito superior a todo o orçamento do ensino superior português, mesmo considerado o financiamento total da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Embora a qualidade do ensino no IST seja excelente e competitiva a nível internacional, o limitado número de residências e espaços de estudo em Lisboa, a superior qualidade dos laboratórios das grandes universidades europeias e, também, o interesse em conhecer uma nova realidade acabam por representar factores decisivos na escolha dos alunos. A qualidade da investigação, desenvolvimento e inovação, que melhorou muito nas últimas décadas, acabará por ser afectada, a prazo, pela nossa incapacidade para reter os melhores professores e investigadores nas actuais condições orçamentais.

É fundamental que as universidades portuguesas se posicionem para competir no mercado global, atraindo os melhores estudantes, professores e investigadores. Mas para que isso possa acontecer, é absolutamente necessário definir um plano de financiamento do ensino superior português que, pelo menos, permita colmatar as mais sérias necessidades de investimento. No mínimo, devíamos investir tanto em cada aluno do ensino superior como investimos em cada aluno do ensino básico e secundário. O próximo governo deveria definir um plano de convergência, que permitisse repor pelo menos uma fracção do financiamento perdido nos últimos 15 anos. Se assim não acontecer, acontecerá com o ensino superior português o mesmo que aconteceu com o cavalo do inglês. Quando estava quase a habituar-se a viver sem comer, morreu.

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