O país da bússola perdida

O que esta desafinação revela sobretudo é um Governo dividido nas suas sete quintas, em que cada qual fala para o seu lado e onde prevalece a regra do salve-se quem puder.

Como é sabido, a desorientação dos partidos da direita face à chamada crise dos professores foi o factor decisivo da vitória do PS nas europeias. Mas, passadas apenas algumas semanas, onde vai já esse tempo de triunfais expectativas socialistas?

Não que, entretanto, alguma coisa de essencial tenha efectivamente mudado: a direita continua desorientada e em busca de um qualquer novo rumo (seja isso o que for, desde as várias iniciativas avulsas de Rio, procurando erraticamente um terreno que teima em mostrar-se nebuloso, vazio ou já ocupado pelo PS, até à tentativa melodramática de Cristas, através de um livro confessional, em “humanizar” ou “cristianizar” um discurso que descarrilara em crispação revisteira).

A “novidade” – se é que a palavra faz sentido – está na veloz multiplicação dos sinais de uma desorientação governativa que já vinha de trás mas nunca fora tão evidente como agora, com os socialistas manifestamente incapazes de dar coerência e sentido às posições que vão tomando em várias frentes e se mostram por vezes ostensivamente contraditórias.

Já tivéramos avisos recentes dessa desorientação como o caos gerado nos transportes urbanos com a introdução dos novos passes e a dramática falta de meios ferroviários, rodoviários e fluviais para corresponder ao inevitável (e, em princípio, desejável) grande aumento da procura. Ou seja: deu-se um passo “revolucionário” sem que se tivessem antes preparado os meios da “revolução”. Mas o último exemplo mais gritante da desafinação política do Governo reside no contraste entre o discurso triunfal de Centeno – inteiramente absorvido na celebração do recorde histórico do défice – e a realidade cada vez mais penosa do SNS e outros serviços públicos essenciais. Enquanto isto acontecia, porém, o primeiro-ministro parecia sobretudo enervado com o espectáculo das filas de espera para renovação do cartão do cidadão.

O que esta desafinação revela sobretudo é um Governo dividido nas suas sete quintas, em que cada qual fala para o seu lado (Centeno, por exemplo, declara-se convencido de que o SNS nunca esteve tão bem como agora) e onde prevalece a regra do salve-se quem puder. Preocupado em manter as aparências para além das verosimilhanças – e tendo até em conta a sua nova dimensão política à escala europeia –, António Costa parece apostado em esticar a corda até onde for possível e custe o que custar (jogando entre a “geringonça” e o PSD) para obter a maior maioria possível nas legislativas. Daí que tudo o resto pareçam minudências, como por exemplo a revelação feita agora pela ministra da Saúde de que contratou 2850 profissionais para responder às 35 horas semanais. Não se calculam os custos e as consequências das decisões, não se definem os planos gerais, de pormenor ou de contingência, para evitar contradições e derrapagens sem remédio? A política é uma tômbola onde a pressão das clientelas acaba por determinar o prémio do jogo – e logo se verá, depois, como se compõem ou disfarçam as coisas. Estaremos então condenados a ser o país da bússola política perdida?

P.S.: A revolta das cidades: dois milhões em Hong Kong impuseram-se à tirania chinesa e a maioria dos habitantes de Istambul não temeram desafiar a autocracia do novo sultão, Erdogan. Foram apenas dois sinais, mas luminosos, num mundo onde a tendência dominante parece favorecer a escuridão.

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