O mais mexicano dos discos portugueses nasceu em Coimbra

Rita Joana quis, num disco, celebrar o fulgor das vedetas mexicanas de meados do século XX. El Cine é apresentado ao vivo esta sexta-feira em Coimbra, no Salão Brazil, às 22h.

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Rita Joana apresenta "El Cine" ao vivo nesta sexta-feira, em Coimbra DR

Parece a reencarnação de uma antiga estrela mexicana. Mas Rita Joana é portuguesa, tem 38 anos e antes de se transfigurar para a capa do seu disco de estreia, El Cine, tem uma curiosa história. Nascida em Coimbra, Rita cresceu numa aldeia do baixo Mondego, Santo Varão. “Depois lá me ‘encarceraram’ num apartamento em Coimbra. Na aldeia eu subia às árvores, não me adaptava a sapatos nenhuns, passávamos o tempo entre roubar espigas de milho para fazer nas brasas, à meia-noite, às escondidas de toda a gente, até irmos nadar ao rio e pescar o peixe à toca.” A mudança entristeceu-a, e muito.

“A minha tristeza foi tão grande, que ainda passei uns dias fechada na despensa. Depois, como se não bastasse, meteram-me num colégio de freiras que não entendiam nada daquilo que eu dizia.” Pior: “A minha mãe não me deixava conviver muito com os gaiatos da aldeia, então acabei por estar muito isolada. E pensava que as músicas infantis que me cantavam as velhas lá da aldeia tinham sido feitas para mim. Tinha 4 ou 5 anos e fiz um pé-de-vento no colégio, porque dizia que não estavam autorizados a cantá-las. Não foi bonito, mas fui precursora dos direitos de autor.”

De Joselito a María Félix

Até que um dia viu e ouviu, na televisão, Joselito e Marisol: “Eu passava as férias de Verão todas na aldeia e devo ter apanhado algum ciclo na RTP. Era muito jovem e recordo-me de ter ficado absolutamente deslumbrada por haver alguém com mais ou menos a minha idade a cantar daquela maneira e num linguajar que eu achava (o Aquilino Ribeiro que me perdoe) ainda mais bonito que o nosso. E as músicas tinham uma estridência que, em lugar de me afastar, me atraía.”

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Rita Joana na capa do CD

Não só isso, também os ambientes. “O cenário campestre de alguns desses filmes levava-me de volta para o sítio de onde me tinham ‘raptado’.” Começou a tentar cantar, a ouvi-los. E aqueles sons haviam de persegui-la, inexplicavelmente. Porque não tardou a “descobrir” Sarita Montiel e a ouvir, no meio dos vários vinis que havia lá por casa (Fausto, Júlio Pereira, fado, country), as vozes dos mexicanos Jorge Negrete ou Pedro Infante. E todos eles lhe traçavam já o destino.

Na verdade, nascia ali uma forte paixão, com o México em destaque. “Recordo-me de ter ficado absolutamente encantada com a [actriz e cantora mexicana] María Félix no filme La Bandida, e depois no filme que lhe dá o nome, La Doña. Não encontrara nenhuma mulher como ela, livre, absolutamente livre.” Isso foi na pré-adolescência, e ia contra a educação que Rita então recebia. “Eu estava a ser educada para reger aquele matriarcado que nós temos debaixo do tapete.”

Tudo isto viria a conduzi-la a El Cine, o seu disco de estreia, que foi lançado este ano e vai ser apresentado ao vivo esta sexta-feira em Coimbra, no Salão Brazil, às 22h. Um disco onde ela surge na capa como num filme mexicano e que conta com a participação de nomes como Susana Travassos, Celina da Piedade, Luanda Cozetti, Miguel Calhaz e Miguel Mira, além dos músicos António Quintino e Diogo Duque. A produção é do músico brasileiro Nilson Dourado.

Uma coragem tardia

“Começo a ganhar coragem para assumir que queria cantar muito tarde, aos 30 anos”, diz Rita. Para os pais, ele ex-militar e ela professora do ensino superior, foi o segundo momento de pânico. O primeiro foi quando, aos 17 anos, Rita lhes comunicou que ia seguir filosofia. “Mas quando eu lhes disse que queria pegar num microfone e cantar, aí acharam que eu tinha avariado de vez.” Para contrariar essa ideia, ela aplicou-se no projecto e quis mostrar que era capaz de dar o seu melhor. “Há cinco anos meti na cabeça que este disco tinha de ser feito e comecei a trabalhar nele há uns três anos e meio. Escolhi as canções, reuni muitas (tantas, que me apetece fazer uma sequela) e seleccionei as que eu mais sentia que podiam acompanhar momentos emblemáticos da minha vida.” E assim entraram no disco La media vuelta, No me amenaces, Poquita fé, La noche de tu partida, Mi segundo amor, Maldito abismo, Puñalada trapera, Resulta, No volvere, Pa todo el año, Malagueña salerosa e A vingança de Sara Montiel, composta pela própria Rita Joana.

Disco nascido de uma paixão que cruza música e cinema, ela reflecte-se na capa, numa fotografia encenada. “Nem todas as músicas de El Cine entram em filmes, mas quis sublinhar essa junção. Eu queria que fosse algo que nos remetesse para os cartazes de cinema da época. É uma foto do Vitorino Coragem trabalhada pela Zita Pinto e onde eu faço parte do cenário. Como não tenho máquina do tempo, nem posso convidá-los a estarem comigo, coloquei-me nessa situação.”

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