A educação e a democracia

Não é possível falar de um verdadeiro sistema democrático quando a desigualdade de oportunidades permanece em níveis que apontam para sociedades aristocráticas ou organizadas segundo sistemas de castas.

Um estudo levado a cabo pela Fundação Belmiro de Azevedo, divulgado ontem pelo jornal PÚBLICO, apresenta conclusões que nos confrontam com um dos maiores falhanços da democracia portuguesa. Mais de quarenta anos após a sua instauração a nossa democracia revela uma trágica incapacidade de garantir a concretização de uma das suas obrigações mais básicas: a promoção da igualdade de oportunidades. Admitindo que as democracias europeias contemporâneas são todas elas, nos seus aspectos essenciais, subsidiárias do pensamento republicano associado aos grandes ideais da Revolução Francesa, a denegação do princípio da igualdade de oportunidades constitui uma amputação séria do projecto democrático. Não foi por acaso, aliás, que o republicanismo francês, de índole profundamente democrática, atribuiu à escola pública a função nuclear de promoção e de consolidação histórica dos princípios e dos valores que prosseguia.

A componente formal da democracia, contrariamente ao que preconizavam os seguidores do pensamento marxista, é absolutamente fundamental. Sucede, porém, que é manifestamente insuficiente para que possamos falar de uma sociedade verdadeiramente democrática. A grande insuficiência do pensamento liberal reside, justamente, na incapacidade de perceber que a afirmação da autonomia individual pressupõe um certo grau de democratização social e económica. Quando estas falham o sistema democrático tende a reduzir-se, de facto, a uma dimensão formal incompatível com as suas próprias exigências no plano doutrinário.

O estudo anteriormente referido revela uma realidade perturbadora: o nosso sistema de ensino reproduz as desigualdades económicas e sociais. Há informações específicas com um conteúdo avassalador: mais de 70 por cento dos estudantes de medicina são filhos de pais com formação universitária. Isto revela algo aterrador numa sociedade pretensamente democrática: há cursos para ricos e há cursos para pobres. A universidade pública, que por definição deveria contrariar toda e qualquer forma de privilégio, reproduz uma desigualdade económica e social hereditária. É possível falar de uma verdadeira democracia num contexto desta natureza? Não, não é possível.

O que tudo isto indicia é que o nosso sistema educativo está a falhar estrondosamente numa das suas funções mais importantes: a de garantir a cada indivíduo que enquanto cidadão da mesma República tem os mesmos direitos que todos os demais. Já sabíamos que assim não era, mas não esperávamos que essa incapacidade fosse de uma ordem tal que questiona alguns dos fundamentos do contrato social e político em que fundamos a organização da nossa sociedade. Imaginemos que esta situação se aplicava ao sector da saúde - teríamos diferenças exponenciais de esperança de vida entre ricos e pobres. É certo que essa diferença existe mas não tem, em termos comparativos, qualquer similitude com o que agora constatamos que ocorre no plano da educação.

Nunca fui favorável à publicação dos rankings escolares do ensino secundário. Não é possível comparar um colégio privado, que selecciona os seus alunos no seio das elites económicas e sociais, e uma escola pública que recebe educandos provenientes dos sectores mais desfavorecidos da sociedade portuguesa. O que pode haver de comum, para nos atermos à cidade do Porto, entre o Colégio do Rosário, que acolhe os filhos da burguesia local, e a Escola Básica e Secundária do Cerco frequentada pelos filhos dos habitantes de um bairro social marginalizado? Infelizmente muito pouco. Neste caso estamos a falar da distância entre uma escola privada e uma escola pública. Só que essa mesmíssima disparidade também ocorre entre escolas públicas consoante a sua localização geográfica.

A questão não é de tratamento fácil e exige respostas inovadoras. A escola republicana francesa de Jules Ferry era uma escola de exigência. Um espaço escolar onde o professor vê diminuída a sua autoridade, onde o princípio da transmissão do saber não prevalece sobre práticas pedagógicas folclóricas e onde um certo facilitismo se sobrepõe a uma cultura da responsabilidade contribui fortemente para a perpetuação das desigualdades. Precisamos de rever profundamente o nosso modelo educativo. A escola que serve a democracia não é a escola que se rende ao triunfo da infantilidade, nem tão-pouco aquela que se demite de qualquer função no plano da formação cívica. Se há domínio onde é possível constatar, simultaneamente, as profundas incapacidades de um esquerdismo adolescente e de um liberalismo radical é justamente o domínio da educação. A combinação espúria destas duas correntes de opinião concorre para a produção de efeitos catastróficos.

Não é possível falar de um verdadeiro sistema democrático quando a desigualdade de oportunidades permanece em níveis que apontam para sociedades aristocráticas ou organizadas segundo sistemas de castas. Não estamos a falar de uma questão menor mas sim de um tema central em qualquer regime democrático. O que o estudo agora publicado revela constitui uma verdadeira infâmia. Se há tema que se deve constituir numa questão central nos próximos anos deve ser este mesmo - o da educação enquanto dimensão fundamental para a plena afirmação da democracia.

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