A Política do Futuro

A enorme falta de clareza da política do futuro entre nós é, deste ponto de vista, preocupante. Onde está a motivação para votar em alguém se não soubermos o que quer para o futuro do país?

Um dos mistérios mais fascinantes para quem estuda o social e o político é a questão do tempo. Todos sabemos o que o tempo é, como dizia Santo Agostinho, até sermos confrontados com a necessidade explicar o que o tempo é. Isto é particularmente verdade para o tempo social, o tempo tal como vivido por cada um de nós, individualmente, e por todos nós, coletivamente.

Hoje em dia, o aspecto mais estudado do tempo social é, de longe, o passado. Os historiadores, mas também os cientistas sociais, dedicam grande parte do seu tempo a estudar o que se passou, porque é que se passou dessa forma e não doutra, e quais as implicações disso para o presente. Têm razão. De facto, muito do que fazemos “aqui e agora” é determinado por coisas que aconteceram há muito. É virtualmente impossível entender o nosso sistema de partidos sem perceber o que se passou nos meses imediatamente subsequentes ao 25 de Abril de 1974. Mas, de igual forma, não é possível atender aos problemas que afetam os nossos partidos políticos sem uma referência ao futuro.

Poucos são, porém, os que se dedicam a pensar seriamente o futuro das nossas sociedades e sistemas políticos. E quando o fazem, como é o caso, por exemplo, de muitos economistas e demógrafos, a tendência é para reduzir o futuro a uma projeção controlável, mensurável e previsível em continuidade com o presente e o passado. A linha do tempo é aqui linear e irreversível, exatamente tal como o movimento dos segundos, minutos e horas registado nos mostradores dos nossos relógios. A história dos últimos dois séculos está repleta de exemplos de sistemas de pensamento e ideologias políticas que adotaram esta forma específica de pensar o tempo. O que é o estruturalismo senão uma forma sofisticada de estudar o efeito acumulado de mudanças na estrutura das nossas sociedades, mudanças estas só visíveis quando expostas na sequência cronológica dos séculos? E o que foi o marxismo senão uma ideologia que procurou organizar a mudança social e política em torno da linha do tempo, no final da qual a utopia comunista esperava pelos crentes devidamente emancipados?

O futuro, porém, é imprevisível. E isso não é necessariamente uma coisa má. Muitas vezes, o futuro assinala uma descontinuidade com aquilo que aqui nos trouxe: é por isso que a vida está repleta de episódios de inovação. Que coisas sem precedentes teima em surpreender-nos. Na realidade, a forma como nós seres humanos experienciamos o tempo pouco tem a ver com a ideia modernista de uma linha irreversível e previsível.

Como José Saramago escreveu um dia sobre o passado:

Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

O mesmo pode ser dito do futuro. Nós pensamos o futuro não em função de uma métrica imaginária, em que os minutos se sucedem uns aos outros até ao final dos tempos, mas em termos de “mil camadas” de projetos ou objetivos que desejamos alcançar: ter filhos, casar, arranjar emprego, ser promovido, viajar, etc. Todos estes objetivos são comuns, mundanos até. Muitos deles nunca serão concretizados. E os que forem, sê-lo-ão de forma diferente daquela que imaginámos. Mas nem por isso deixam de ser aquilo que estrutura a nossa vida. Como é que sabemos isto? Porque um dos sintomas de depressão é precisamente a sua ausência. De igual forma, uma sociedade sem a capacidade de imaginar coletivamente o futuro é uma sociedade condenada a definhar e, a prazo, a desaparecer.

É, portanto, necessário que sejamos capazes de olhar juntos para o futuro. É necessário sermos capazes de nos projetarmos, coletivamente, em torno de algo está ainda por criar. É por isto que já é tempo de começarmos a levar o futuro mais a sério. Se isto é verdade para os cientistas sociais, que têm de começar a prestar mais atenção ao futuro nas suas análises e modelos, é sobretudo verdade para quem nos governa. Há, pelo menos, duas razões para que os políticos devam levar o futuro mais a sério.

Desde logo, pela mesma razão porque devemos cuidar da política da memória se desejamos cuidar da nossa identidade. Quem somos é uma questão de raízes e memória, sim. Mas também é uma questão de partilhar um projeto de vida comum – um projeto necessariamente a construir no futuro. Se os museus têm a responsabilidade de cuidar da política da memória, porque não devem também ajudar-nos a cuidar da política do futuro? Mostrar o império colonial português ao público, por exemplo, é importante para não nos esquecermos o que nos trouxe até aqui; mas é também importante para não repetirmos erros do passado e, assim, ajudar-nos a corrigir problemas que teimam em não desaparecer. É por isto que o futuro não nos ajuda apenas a responder à pergunta – Quem somos?; a forma como lidamos com o futuro diz-nos muito sobre a presente distribuição de poder.

A política do futuro é, de facto, um espelho da política do presente. Dar preferência a um cenário de evolução futura de segurança social ou demonstrar preocupação com as mudanças climáticas e agir (ou não) em conformidade são decisões eminentemente políticas; sendo sobre o nosso futuro coletivo, revelam muito sobre o aqui e agora.

A enorme falta de clareza da política do futuro entre nós é, deste ponto de vista, preocupante. Onde está a motivação para votar em alguém se não soubermos o que quer para o futuro do país? Como apoiar um partido se, perante um futuro cada vez mais imprevisível, este não nos apresentar um conjunto de princípios orientadores da ação política, uma visão coerente do futuro que deseja para o país, bem com uma estimativa dos custos e benefícios das políticas concretas que derivam dessa visão geral?

O que é preocupante não é tanto a falta de estudos sobre cenários futuros nas várias áreas de governação, que existem. Poucos, é certo, mas existem. O que é realmente preocupante é o incómodo que alguns deles causam a quem governa. Muitas das vezes, acabam na gaveta. Até porque isto por vezes significa, como António Guterres reconheceu há dias, colocar os interesses das gerações atuais à frente do interesse das gerações futuras. Claro que estas não votam e, portanto, no curto prazo, está tudo bem. Mas basta pensar a médio e longo prazo para vermos que não está tudo bem. Num país cada vez mais envelhecido e desigual, será que temos o direito de não cuidar dos direitos das gerações futuras? Num país em que bastou um discurso desassombrado para fazer da comemoração do 10 de junho o tema de conversa da semana, já vai sendo tempo de falarmos abertamente sobre que projeto cada um tem para o futuro de Portugal.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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