Milton regressa à esquina onde o Brasil um dia foi feliz

Pela primeira vez, os históricos discos Clube da Esquina preenchem um espectáculo. Milton Nascimento apresenta-o em Lisboa e Porto, esta quarta e quinta-feira, com Carminho e Fafá de Belém por convidadas.

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Milton Nascimento JOÃO COUTO

Na verdade não era um clube, era só uma esquina. Mas foi ali que começou a germinar no Brasil dos anos 1960, em encontros de jovens músicos, o movimento que ficaria conhecido como Clube da Esquina e que no primeiro disco, homónimo, contou com Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Beto Guedes, Tavito, Wagner Tiso, Toninho Horta, Robertinho Silva, Luiz Alves, Nelson Angelo e até (nos arranjos) Paulo Moura e Eumir Deodato.

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Capas dos discos Clube da Esquina (1972) e Clube da Esquina 2 (1978)

Clube da Esquina (1972) e Clube da Esquina 2 (1978), à época lançados em LP duplos, são retomados agora por Milton Nascimento num espectáculo que celebra a sua criação e onde podem ouvir-se, a par de temas marcantes vindos desses álbuns (como Cais, Cravo e canela, Nada será como antes, Maria Maria, O que foi feito de Vera ou San Vicente, também conhecido como Coração americano), canções que nunca tinham sido antes interpretadas ao vivo.

O espectáculo estreou-se no Brasil, em Juiz de Fora (Minas Gerais), seguindo depois para Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e várias outras cidades, até chegar a Curitiba. Daí, partiu para a Europa: Londres, Zurique, Amesterdão, Madrid. Em Portugal, apresenta-se nos coliseus de Lisboa (esta quarta-feira, 22h) e Porto (quinta, 22h), e antes de voltar ao Brasil, onde continuará na estrada até ao final deste ano, ainda tem actuações previstas em Telavive, Berlim e Paris.

O começo de uma parceria

Onde ficava a tal esquina? No cruzamento das ruas Divinópolis com a Paraisópolis, em Santa Tereza, Belo Horizonte. Nascido no Rio de Janeiro, em 1942, Milton Nascimento fizera amizade com os irmãos Marilton, Márcio e Lô Borges, todos mais novos do que ele, a partir de 1963, ano em que se mudou para Belo Horizonte para estudar Economia. Ao PÚBLICO, ele recorda esses tempos: “O Clube da Esquina começou numa época em que eu morava no Rio e fui a Belo Horizonte, para me encontrar com os irmãos Borges. Então, quando ia a chegar a casa deles, saiu de lá o mais novo, um garotinho, e eu disse: ‘Lô, vamos a um bar ali em baixo; eu vou tomar uma batida de limão [uma bebida alcoólica, feita à base de limão e cachaça] e você vai tomar uma Coca-Cola.’ Ele disse: ‘Vamos’. Mas quando lá chegou, falou assim: ‘Eu adoro você, adoro o Marcinho [Márcio, seu irmão], mas vocês não gostam de mim, nunca me levam a lugar nenhum.” No bar, Milton pediu a tal batida e Lô não quis ficar atrás: “Também quero uma batida!” E só então Milton lhe explicou o que se passava: “A gente não te chamava para lugar nenhum, Lô, porque até pedir essa batida, para mim você era uma criança. E a partir de hoje não é mais.”

E ainda era menos criança do que parecia, porque, já em casa dos pais, mostrou a Milton “uma porção de coisas” que tinha composto, até chegar a uma, incompleta, a que faltava a melodia. Então pegaram nos violões, ele e Milton, e nasceu uma canção a que deram o nome de Clube da Esquina. “Foi a primeira canção que a gente fez juntos.” A primeira parceria Lô-Milton, que viria a ficar estampada no rosto do primeiro disco do Clube da Esquina. Mas a foto da capa não tem nada a ver com Milton e Lô. São dois meninos, Cacau e Tonho, fotografados nos arredores de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro. O jornal Estado de Minas encontrou-os, ao fim de inúmeras buscas, falou com eles e contou a história em 2012, no 40.º aniversário do disco.

Reviravolta da crítica

A carreira musical de Milton, porém, começara antes do Clube. Em Três Pontas tocava em bailes com Wagner Tiso, no grupo W’s Boys (o seu disco Crooner, de 1999, recorda esses tempos), em 1962 gravou a primeira canção, Barulho de trem; em 1966 deu Canção do sal a Elis Regina, que a gravou; e em 1967 lançou o primeiro LP a solo, Travessia, a que se seguiram Courage (1968), Milton Nascimento (1969) e Milton (1970). E entre o primeiro Clube da Esquina e o segundo, editado em 1978, teve ainda alguns discos marcantes na sua carreira: Milagre dos Peixes (1973) Native Dancer (com Wayne Shorter, 1974), Minas (1975), Geraes (1976) e Milton (1976). Mas os Clubes fixaram um momento único e inovador. “A gente sabia que era uma coisa diferente”, diz Milton hoje. “O Clube da Esquina 2, por exemplo, tinha gente que não era de Minas mas tinha uma batida e uma percepção bem mineira. E o disco foi para o mundo inteiro. Aí é que a gente começou a perceber que era uma coisa bem particular.”

No Brasil, as opiniões extremaram-se. “A reacção dos músicos e do público foi muito boa, foi muito lindo. Agora a da crítica foi um horror”, recorda Milton. Diziam que ele não era mais o mesmo de 1967, que estava acabado. E só se tinham passado cinco anos do seu primeiro disco a solo. Foi preciso chegarem as (boas) críticas americanas ao Clube da Esquina 2 para que o primeiro disco fosse então reavaliado.

Salvo por Ray Charles

Elis Regina costumava dizer que Milton cantava com a voz de Deus. Mas no início, ele ouviu sobretudo cantoras. “Ouvia mais as mulheres, tanto brasileiras como americanas: Ângela Maria, Elizete Cardoso, Marlene, Nina Simone, Sarah Vaughan, Yma Sumac. Não gostava da voz de homem. Eu achava que as cantoras tinham coração e os homens não tinham. Quando eu fiz 13 anos e a minha voz começou a engrossar, eu saía pela casa dos meus pais gritando: ‘Não quero cantar como um homem, não quero.’ E chorava. Eles só diziam: ‘Deixa que isso passa’.”

E passou. “Um dia, estava eu na oficina do meu pai, e comecei a ouvir uns violinos, um coral masculino e depois feminino, misturados, e em seguida uma voz que eu não conhecia. Quando acabei de ouvir essa música, concluí: ‘Ah, afinal, homem também pode cantar.’” A música era Stella by starlight e voz desconhecida era a de Ray Charles. “Salvou minha vida, Ray Charles!”

A ideia de retomar os sons do Clube da Esquina num espectáculo foi do filho de Milton, Augusto Kesrouani Nascimento. O alinhamento também. Milton adorou. E os coliseus estão à espera.

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