O Alzheimer que Carnevali lança sobre um corpo e sobre a Europa

Gonçalo Carvalho apresenta no Teatro da Politécnica um texto de Davide Carnevali, Variações sobre o Modelo de Kraepelin, que aborda as falhas da memória — pessoais e colectivas.

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As falhas da memória, pessoais e colectivas, estreia-se hoje no Teatro da Politécnica

Afirma a Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental que a psiquiatria moderna “surgiu de um salto qualitativo, uma descontinuidade histórica marcada pela introdução definitiva do método clínico por Emil Kraepelin (1856-1926)”. É pouco claro que contacto o dramaturgo italiano Davide Carnevali terá aprofundado em torno da investigação científica de Kraepelin, mas o certo é que o chamou para o título da peça Variações sobre o Modelo de Kraepelin – que se estreia esta quarta-feira no Teatro da Politécnica, em Lisboa, na encenação portuguesa dirigida por Gonçalo Carvalho que estará em cena até 13 de Julho. Terá sido Kraepelin, na verdade, a cunhar a designação “doença de Alzheimer”, em 1910, no seu Tratado de Psiquiatria, tendo trabalhado de perto com o investigador Alois Alzheimer. Ora é dessa doença que se ocupa o texto de Carnevali, mas também, e de uma forma mais genérica, das várias falhas de memórias, individuais e colectivas.

Em palco há três homens sem nome. Um deles, cuja idade avançada não demorará a ser sugerida, comporta-se como uma criança. O outro tenta acompanhá-lo e puxá-lo, tanto quanto possível, à razão. Também não tardará a tornar-se evidente que o mais velho, que trata o mais novo por “papá”, é não o filho, mas o pai do segundo. Se parece confuso é porque a ideia é mesmo essa. “Os primeiros 15/20 minutos da peça são confusos – mas assim é a doença”, diz Gonçalo Carvalho ao PÚBLICO. O encenador, que assistiu a um processo semelhante de degeneração nos últimos anos de vida do seu avô, pensa, por isso, no palco como uma antecâmara do fim, como se aquele espaço pudesse assemelhar-se às salas onde são cumpridas as penas de morte, colocando o público na mesma posição de um voyeurismo incómodo e violento. “O ideal”, afirma, “era que os espectadores se questionassem, nalguns momentos, se têm o direito de estar a assistir e a observar coisas tão privadas.”

Alinhado com a doença, Davide Carnevali indica nas notas introdutórias ao texto que os vários fragmentos que compõem Variações sobre o Modelo de Kraepelin podem aparecer numa outra ordem, ser misturados, omitidos, repetidos, sobrepostos ou interrompidos, criando um dispositivo livre mas que, acredita o encenador, “não é tão fragmentado como à partida parece ser, assim como as cenas estão numa ordem que não é tão aleatória quanto parece num primeiro momento”. Daí que, embora tenha trabalhado com os três actores – João Vicente, João Pedro Mamede e Vicente Wallenstein – com o pressuposto de que a estrutura poderia alterar-se profundamente durante o período de ensaios, a verdade é que Gonçalo Carvalho (que chegou ao texto por sugestão de Jorge Silva Melo) optou por mudar apenas um monólogo de sítio, tentando clarificar o ambiente em cena.

Aos poucos, o encenador foi percebendo que a sua atenção deveria ser emprestada aos muitos pormenores com que Carnevali vai pontuando o texto, que enriquecem o espectáculo mas que devem ser marcados para que não passem despercebidos. Isso revela-se, por exemplo, num jantar que vemos acontecer em três ocasiões, “variações sobre as repetições que a vida tem”, chama-lhe Gonçalo Carvalho. Nesses jantares, o homem mais velho repete exactamente o mesmo discurso, enquanto o mais novo muda o texto – primeiro, tentando estimular a memória do pai, depois confrontando-se com uma história que solidificou naquele relato e, finalmente, frustrando-se e tentando que o pai saia do loop em que se enfiou. “Esse é todo um processo complicado que passei a nível pessoal: o tempo de não perceber a doença, a frustração e, por fim, a aceitação de que apenas podemos tentar levar a situação até ao fim o melhor que conseguirmos.”

Tratando-se de um texto de Carnevali, autor de Sweet Home Europa, esta é uma peça que aponta também para a falta de memória histórica de um continente europeu esquecido de si mesmo. “Se a memória nos molda tanto e nos forma tanto enquanto pessoas”, aventa o encenador, que identidade pode ter a Europa se o passado se tornar uma névoa ou, pior ainda, uma recordação adulterada por uma visão fantasiosa daquilo que se passou?

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