Salas de Consumo Assistido: keep calm and carry on

A implementação de projetos deste tipo, com tranquilidade e envolvimento das comunidades locais, abre espaço e confiança para discutir novas intervenções e reformas necessárias, que façam avançar a recuperação de quem precisa para a vida colectiva e a cidadania.

As drogas e o seu consumo são realidades complexas para as quais não existem soluções únicas. As pessoas que usam drogas, tal como as outras, não são todas iguais. Desenvolvem uma relação com as substâncias muitíssimo diversa, desde consumos ocasionais a situações de dependência, daí a necessidade de existirem respostas variadas, que se complementam.

Lisboa tem construído uma rede sólida de respostas em várias áreas: programas de prevenção, tratamento, equipas de rua, programas de metadona e acolhimento especializado. Lisboa e Portugal são, para grande parte do mundo, um exemplo a seguir nesta área.

No entanto, estavam ainda por concretizar as Salas de Consumo Assistido, uma resposta prevista na legislação portuguesa desde 2001 com o nome de “Programas de Consumo Vigiado”. Trata-se de serviços desde há muito defendidos por associações e profissionais de saúde e identificados como necessários nos diagnósticos oficiais da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, em 2015.

A primeira Sala de Consumo Assistido do país começou a funcionar, no passado mês de Abril, em Lisboa. É uma unidade móvel que se aproxima de alguns dos locais onde o consumo já existe, neste caso, na freguesia do Beato. Em breve irá iniciar também intervenção em locais identificados na freguesia de Arroios. A equipa, composta por mediadores e profissionais de saúde, incentiva os consumidores a realizarem os seus consumos na carrinha, sem se esconderem como o fizeram durante décadas. Além de contar com a supervisão dos profissionais, nesse espaço pode-se consumir com segurança e higiene.

Simultaneamente, são propostos aos utentes outros serviços, como rastreios, encaminhamento para tratamentos, assim como soluções para um conjunto de problemas legais. Procura de habitação, situações de desemprego, de solidão e desamparo que se foram criando paralelamente aos consumos são realidades que também têm resposta através desta unidade.

O consumo como ponto de partida para outras intervenções

Para se perceber a importância destes equipamentos há que ter em conta que os consumos injetados em espaços públicos (por receio ou vergonha de se ser visto) têm maior probabilidade de serem apressados, o que pode provocar lesões e sobredosagens evitáveis.

Qualquer injeção feita num descampado, casa de banho pública ou casa ocupada não garante as mínimas condições de higiene. São um problema de saúde pessoal mas também de saúde pública. Uma injeção realizada sem apoio profissional envolve também maior probabilidade de reutilização do material ou de partilha, aumentando o risco de infeção por VIH, hepatite B e sobretudo da hepatite C, prevalente em mais de 80% dos injectores. Consumir com acompanhamento de profissionais garante a possibilidade de se procurar ajuda, de discutir opções de tratamento ou de ser socorrido em caso de sobredosagem.

O impacto das salas na saúde, comunidade e na criminalidade

Além das melhorias na higiene e segurança dos consumidores, na redução da partilha de material e injeções de risco associadas a infeções, a investigação realizada nas salas existentes noutros países mostra-nos que os programas conseguem atingir vários outros resultados: redução das mortes por overdose, aumento do acesso a tratamentos, melhorias no bairro e na comunidade devido à redução do consumo no espaço público, diminuição da presença de seringas e outros materiais nas ruas e redução das chamadas de emergência. Não estão associadas de qualquer forma a aumento da criminalidade, tráfico ou roubos, visto que o consumo já era efectuado nos locais onde se criou a resposta.

Vitórias sobre o populismo

Apesar da eficácia comprovada pelos investigadores, com benefícios na saúde individual e pública bem como na redução das desigualdades, a implementação de programas deste tipo, nos dias de hoje, pode ser também considerada uma vitória sobre o populismo. Vivemos num momento de crescente populismo médico, em que se simplifica o discurso sobre problemas complexos, duvida-se do sistema e do conhecimento científico e utilizam-se questões de saúde para fazer disputa e divisão ideológica. Estes discursos simplificadores são amplificados pelas redes sociais, com algoritmos que filtram a exposição a visões diferentes, e que auto-reforçam as crenças pessoais.

A implementação da primeira sala resistiu a este primeiro impacto, contando no território com o apoio de moradores, das associações locais, das juntas de freguesia e das forças de segurança, que tiveram oportunidade de conhecer previamente o projeto, esclarecer dúvidas e discutir localizações. Esta estrutura estabeleceu-se com normalidade e rapidamente se tornou mais um espaço de saúde no território, sendo um recurso para pessoas que usam drogas e outras, que pretendam por exemplo verificar a sua tensão arterial, gratuitamente. Esta implementação tranquila e participada é um exemplo de cidadania. Sabemos que respostas simplistas e repressivas não funcionam e a população e as associações destas freguesias de Lisboa mostraram disponibilidade para colaborar na construção de soluções mais eficazes, diversas, com proximidade e com um foco nos direitos e na saúde.

E agora?

A abertura da primeira Sala de Consumo Assistido poderá abrir portas a projetos semelhantes no Porto e noutras cidades que delas necessitem. Cria também a possibilidade de fazer novas intervenções, trabalhando de forma mais direta nas situações de consumo, retirando o consumo dos espaços isolados, reduzindo o estigma de quem usa drogas e que não procura ajuda por vergonha e por falta de ligação a estruturas sociais. A implementação de projetos deste tipo, com tranquilidade e envolvimento das comunidades locais, abre espaço e confiança para discutir novas intervenções e reformas necessárias, que façam avançar a recuperação de quem precisa para a vida colectiva e a cidadania. Psicólogo

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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