Morreu o ídolo erótico da Argentina

Do final dos anos 1950 até aos anos 1970, os filmes de Isabel Sarli povoaram os sonhos eróticos de um país censurado.

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Isabel Sarli em "Carne", estreado em 1968 DR
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A actriz com o companheiro e realizador Armando Bó DR
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Isabel Sarli em "Desnuda en la arena" DR

Com a morte de Isabel “Coca” Sarli, esta terça-feira, aos 83 anos, desaparece não só um dos grandes ídolos populares do cinema argentino e latino-americano, como se esvanece a mulher que desde o final dos anos 1950 até aos 1970 povoou os sonhos eróticos dos adolescentes nascidos nesse tempo em que o sexo era coisa feia, obscura e censurada.

Coca Sarli foi protagonista em quase três dezenas de filmes realizados pelo companheiro, Armando Bó, transformando-se num ídolo de multidões, desejada por uns, vituperada por outros (muitas mulheres que se cruzavam com ela na rua faziam o sinal da cruz), sempre figura popular, estrela do firmamento cinematográfico.

Ainda hoje, é uma das figuras mais requisitadas pelos investigadores no Museu de Cinema de Buenos Aires, onde uma das salas tem o seu nome. Por alturas da inauguração, em entrevista ao suplemento Las/12 do diário Página/12, a actriz garantia: “Já sou uma peça de museu. Mas não sou nenhuma rainha do cinema argentino. Eu sou a Coca e nada mais.”

Em 2012, o Festival Internacional de Cinema de Buenos Aires (BAFCI) dedicou uma sessão especial completamente esgotada à exibição da cópia restaurada de India, filme de 1959 da dupla Bó/Sarli, cujo original se havia perdido pouco depois da estreia e assim se mantivera durante mais de 50 anos.

Secretária que se converteu em Miss Argentina porque queria ajudar a família, Isabel Sarli foi a primeira mulher a surgir completamente nua numa produção cinematográfica ou televisiva argentina, convencida por Armando Bó, seu marido e realizador, por quem, garantia, “venderia a alma ao Diabo”.

O sucesso e o escândalo de El trueno entre las hojas – com argumento do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos, na altura exilado na Argentina – superou as fronteiras argentinas e granjeou-lhe fama e indignação internacional, com espaço nas grandes revistas norte-americanas como a Time e a Life.

Com Bó, Sarli não era apenas a cara e o corpo bonito no ecrã, encarregava-se também da produção: “O Armando tratava de todo o lado artístico e eu fazia tudo o que tinha que ver com pagar às pessoas, fazer os contratos, falar com distribuidores estrangeiros”, dizia na referida entrevista.

Escreve o crítico e programador de cinema Gustavo Castagna, “o cinema de Armando Bó e Isabel Sarli é único e distinto de qualquer outro realizado no país e em qualquer parte do mundo. Os 27 filmes do realizador e da estrela, num longo período de produção, caracterizam-se pela autonomia, estilo e temas pessoais”.

Era, essencialmente um cinema de amor, no mais subversivo que podia ser o amor numa sociedade que reprimia e censurava corpos e espíritos. Como refere Castagna, “a forte personalidade do realizador e a sua luta contra os burocratas e a censura levam a que público e privado se confundam com os filmes e que, em consequência disso, o abundante anedotário surja como mais relevante que a obra em si mesma”.

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A actriz fotografada por Annemarie Heinrich DP

Como a história desse dia em que Isabel Sarli esbofeteou um padre, o único escândalo em que realmente participou, o resto derivava dos filmes, não eram por acção própria. Numa festa do Instituto de Cine em Buenos Aires nos anos 1970, foi apresentada a um padre que, ao olhar para o seu vestido decotado, apontou-lhe o dedo e gritou: “Veja nos preparos em que anda! Deus não lhe vai perdoar!” A indignação da actriz toldou-lhe o raciocínio e aumentou o poder da bofetada; o padre, por força ou surpresa, caiu sobre as sandes e os refrescos. O escândalo teve dimensão nacional, o padre apresentava a missa na televisão.

Na entrevista ao Las/12, Isabel Sarli sublinhava o seu não arrependimento pela força não contida: “Mereceu, porque se um padre não quer ver um decote, o que andava a fazer num encontro daqueles, de celebridades, um encontro nocturno?”

Por causa das suas opções estéticas e comerciais, “Bó e Sarli transformam-se em demónios obscenos e perversos para a pacatez da sociedade argentina”. No entanto, refere Castagna, “Bó é um realizador que, devido ao seu catolicismo de infância e o catequismo, empreende através da sua cinematografia o resgate da mulher num universo masculino”. Isabel Sarli dizia, com muito humor, que lhe chamavam “a higiénica” porque aparecia muitas vezes a tomar banho.

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