A época de caça às Parcerias Público-Privadas

No final das contas, seja por gestão pública ou privada, o que deverá preocupar o Estado é a qualidade, acesso e satisfação dos utentes. O resto é conversa.

Os avanços verificados na área da Medicina ao longo dos últimos séculos são, inegavelmente, os grandes responsáveis pela prosperidade atual da raça humana. A evolução da medicina deveu-se à ciência e, mais precisamente, ao método científico. Desde cedo os médicos e cientistas perceberam que não se pode fazer boa Medicina com base em crenças subjetivas ou ideológicas. Daí se terem diferenciado dos curandeiros e xamãs tribais do passado.

A expressão “Evidence Based Medicine” ou, em Português, “Medicina Baseada na Evidência”, descreve o rigor científico que deve basear qualquer procedimento, tratamento ou decisão que impacte a vida dos doentes.

Face a uma realidade atual em que o poder político é cada vez mais escrutinado pelas suas decisões e atitudes surgiu, inspirado pela área da medicina, o movimento das “Políticas baseadas na evidência”. Sobre este conceito, a Wikipedia dá a seguinte informação de contexto:

"Política baseada na evidência é um conceito regularmente usado no campo da política pública para descrever situações em que as decisões políticas são por evidência objectiva rigorosamente estabelecidas. Na génese de muitas solicitações de ‘políticas baseadas na evidência’ está habitualmente (de forma assumida ou não assumida) a preocupação com o respeito pelas boas práticas científicas, que reflete a crença de que os objetivos da sociedade são melhor defendidos quando a evidência científica é usada de forma rigorosa e compreensiva para basear as decisões, ao contrário do que acontece quando estas são tomadas de forma tendenciosa, manipulada ou através de generalizações erradas.”

Portanto, a política baseada na evidência acaba por limitar a liberdade individual dos políticos e líderes para defender e implementar medidas com base meramente ideológica. Dito de outra forma, a política baseada na evidência deixa pouco espaço para as ideologias partidárias (pelo menos com as características a que estamos habituados).

Olhemos então a atualidade política nacional. Sobre as questões fracturantes que têm protagonizado a discussão da nova Lei de Bases da Saúde: será que o ataque velado às Parcerias Público-Privadas (PPP) na gestão hospitalar tem alguma base científica? Ou será, na sua maioria, movido por questões meramente ideológicas?

Os defensores de um Serviço Nacional de Saúde de gestão 100% pública dirão que, ao longo dos anos, temos desviados milhões e milhões de euros para grupos privados através de PPP. O ruído gerado neste âmbito, feito de acusações superficiais e números pouco claros, tem sido muito. Em nada abona em prol da serenidade, seriedade e ciência objectiva nas quais a discussão de políticas de saúde deve sempre ser alicerçada.

“Nas costas dos outros vejo as minhas.” Assim, o atual panorama internacional torna bastante óbvio o que pode acontecer às sociedades quando as “fake news” se sobrepõem ao rigor da ciência. 

Se queremos construir instituições públicas fortes e duradouras, há que blinda-las aos ciclos políticos e ideológicos. Foi precisamente essa a diretiva dada por Marcelo Rebelo de Sousa sobre a nova Lei de Bases da Saúde. Não há melhor forma de proteger o futuro do Serviço Nacional de Saúde (SNS) do que despolitizar a gestão das instituições prestadoras de cuidados de saúde. Essa gestão tem de ser feita tendo sempre por critério primordial a qualidade dos cuidados prestados aos cidadãos. Por outras palavras, a evidência científica, transparente e objetiva tem de ser sempre o eixo orientador.

Neste contexto, e porque só este ano já foi anunciada a provável extinção de, pelo menos, duas Parcerias Público-Privadas na gestão de hospitais do SNS, faz sentido questionar: existe evidência inequívoca de que os utentes do Hospital de Braga (ex-PPP) eram pior tratados do que os utentes do restante país? E, se sim, como se explica que esse mesmo hospital, gerido em regime de PPP, tenha sido o melhor hospital do SNS na sua categoria ainda no ano passado? 

Se a comissão técnica a quem coube avaliar cientificamente a PPP de Vila Franca de Xira a avaliou positivamente e recomendou ao Governo a sua renovação, será sensato fazer “ouvidos moucos” à evidência técnica em nome da política ideológica? Existe evidência científica que permita afirmar que os doentes tratados no Hospital de Vila Franca de Xira (gerido em regime de PPP) seriam melhor tratados se este fosse de gestão pública? 

O relatório Euro Health Consumer Index é publicado periodicamente por uma entidade internacional independente. Avalia, de acordo com diversos indicadores objetivos, a qualidade dos sistemas de saúde europeus e dos cuidados prestados aos cidadãos. Na sua última edição, Portugal foi classificado em 13.º lugar. Merecedor de destaque é o facto de em praticamente todos os países melhor classificados, existirem PPPs na área da saúde. Existem até casos de participação privada mais extremada em que o financiamento estatal permite que os cidadãos escolham livremente entre qualquer entidade pública ou privada na área da saúde. Estarão estes sistemas de saúde todos errados?

Um estudo conjunto recentemente publicado pelo Institute for Global Health Sciences – Global Health Group e pela consultora PWC a este propósito refere que, na área da saúde, a tendência crescente para a constituição de PPP pelos governos é motivada por diferentes factores, dos quais se destacam os seguintes :

1) “Necessidade de melhoria da gestão das entidades com vista à promoção de ganhos em qualidade e eficiência dos cuidados de saúde”

Em grande parte das vezes é a própria Lei do Estado que impede que os gestores públicos exerçam as suas funções de forma mais eficiente. Baixos níveis de autonomia, incapacidade de decidir sem aval político e impossibilidade legal de utilização de instrumentos essenciais de gestão como incentivos ou despedimentos. O outsourcing da gestão das entidades de saúde permite, muitas vezes, contornar estes obstáculos.

2) “Necessidade de introdução de serviços e competências inexistentes no sector publico ou expansão de capacidade de resposta e do acesso”

O exemplo da incapacidade de resposta do Estado na área dos cuidados continuados integrados da saúde tem levado o Estado a estabelecer, ao longo dos últimos anos, convenções e parcerias com o sector Privado Não Lucrativo (Social) e Privado de forma a aumentar a sua capacidade de resposta aos mais carenciados de forma mais rápida e transversal. Se este tipo de parcerias não existisse atualmente, a grande maioria dos doentes acamados com necessidades de cuidados especializados de longa duração não teriam, de todo, resposta às suas necessidades, ou morreriam por falta de acesso a cuidados de saúde ou entupiriam hospitais públicos destinados a casos urgentes, vedando acesso a outros cidadãos.

3) Necessidade de melhorias infraestruturais e limitações ao nível do capital disponível para as assegurar

De certa forma, as infraestruturas da Saúde são como os carros. Degradam-se com o uso e tornam-se obsoletas. Por muito estimadas que sejam, acaba sempre por chegar o dia em que é mais rentável a sua substituição do que o custo das suas necessidades crescentes de manutenção. No entanto, essa substituição implica normalmente investimentos enormes em períodos de tempo concentrados.

Terá sido precisamente este motivo que motivou o anterior executivo da Saúde a estudar uma Parceria Público-Privada de construção enquanto forma de viabilizar a construção do tão desejado Hospital de Lisboa Oriental. Em questão estava a necessidade de investimento de um montante superior a 500 milhões de euros cuja alocação pelo Estado num curto espaço de tempo afectaria o défice nacional. E agora? Qual é a solução alternativa? Será que é preferível a vitória ideológica de menos uma PPP? Ou a vitória da construção de um hospital tão necessário e urgente para os doentes tratados nos antigos e desgastados hospitais da velha Lisboa?

Finalmente, é bom relembrar que se hoje existem “más” PPPs (com limitações e falhas que tanto se criticam) é porque alguém teve de os negociar e aceitar em representação do Estado português e do Ministério da Saúde. E essa variável não pode, simplesmente, ser apagada da equação. Por muito mal negociadas que tais PPPs possam ter sido, serão sequer comparáveis às PPPs ruinosas (com evidência comprovada) celebradas em outras áreas, como as autoestradas? Ou será que, afinal de contas, pode haver boas e más PPPs?

Dada a falta de consenso ideológico que se mantém na Assembleia da República quanto à nova Lei de Bases da Saúde, resta aos Portugueses confiar no bom senso e resiliência do nosso primeiro-ministro. Tenham os nossos líderes a sensibilidade para perceber que, no final de contas, talvez a chave para fazer uma boa Lei de Bases da Saúde seja fazer dela uma Política Baseada na Evidência. E, nesse caso, a “época de caça às PPP” acabará muito em breve, porque de científica tem pouco ou nada. No final das contas, seja por gestão pública ou privada, o que deverá preocupar o Estado é a qualidade, acesso e satisfação dos utentes. O resto é conversa. 

Declaração de interesses: O autor assume-se enquanto defensor acérrimo de um Serviço Nacional de Saúde alicerçado na qualidade, evidência científica e sustentabilidade, e não, necessariamente, em modelos de gestão em Parceria Público-Privada. 

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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