Um crime contra a humanidade

Se continuarmos a permitir que jovens como o Miguel Duarte sejam tratados como criminosos, acabaremos inevitavelmente por ser confrontados com o abismo.

A notícia da acusação do jovem português Miguel Duarte mostrou-nos um mundo de pernas para o ar e as redes sociais fizeram ecoar um espanto coletivo.

O Miguel ali estava, a falar português como nós. Era um dos nossos. A dizer que “salvar vidas não é crime”, a despertar-nos para o que tem sido a trajetória seguida pelas autoridades de vários países de criminalização da solidariedade com os imigrantes e refugiados.

Para além de ser uma questão de falta de humanidade, é míope culpar os voluntários e a sociedade civil pelo fluxo de pessoas que arriscam tudo em busca de uma oportunidade de vida com mínimos de segurança e dignidade e imaginar que deixarão de vir se não houver ninguém para os ajudar.

As medidas adotadas pelas autoridades Italianas ao criminalizar as ONG envolvidas no trabalho de busca e salvamento no Mediterrâneo Central resultaram no aumento do número de migrantes que chegam a Espanha, através da rota do Mediterrâneo Ocidental, e no aumento no número de mortes por afogamento.

Criminalizar a sua ação no que diz respeito às operações de busca e salvamento no mar ou no apoio humanitário significa negar auxílio a seres humanos em dificuldade e até mesmo a sua condenação à morte.

No ano passado, em Varsóvia, numa reunião da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, lancei o alerta e falei na necessidade de os diferentes Estados refrearem certos ímpetos legiferantes e reconduzirem-se ao cumprimento dos seus compromissos face ao ordenamento jurídico internacional de respeito e defesa da dignidade da vida humana.

Não é aceitável a tendência que se assiste em alguns países de aprovação de legislação onde se confunde ajuda humanitária com tráfico ou auxílio à imigração ilegal. Uma tendência com óbvias motivações políticas.

Tudo isto é o espelho da incapacidade da União Europeia de definir e concretizar uma política comum de asilo e imigração.

Uma política assente na partilha solidária por parte dos Estados da responsabilidade de proteção e capaz de promover uma gestão dos fluxos migratórios, desejavelmente ordenados, legais e seguros. Uma política que não deixe de intervir nas suas causas reais, através de ações voltadas para a estabilização dos países de origem e de uma política de cooperação para o desenvolvimento, capaz de promover uma efetiva melhoria da qualidade de vida nesses países.

Só assim se evitará o sofrimento atroz e a exploração a que estas pessoas são sujeitas e o drama diário de milhares de vidas em risco.

Desde o pico da denominada crise dos migrantes e refugiados, em 2015, aprendemos muito pouco e continuamos a tardar em enfrentar o óbvio. Somos um continente envelhecido e em acelerada queda demográfica, o que coloca em causa o nosso modelo económico e social. Assumamos claramente: os imigrantes e refugiados que nos procuram constituem uma oportunidade de regeneração das nossas sociedades.

Se continuarmos a negar as evidências, se continuarmos a sucumbir ao medo de imaginários inimigos externos, se continuarmos a permitir que jovens como o Miguel Duarte e tantos outros, de diversas nacionalidades, sejam tratados como criminosos, acabaremos inevitavelmente por ser confrontados com o abismo.

Negar a ajuda humanitária, negar o tratamento digno a qualquer ser humano, negar o direito inalienável à vida é negar a identidade humanista da Europa. É, sejamos claros, cometer um crime contra a humanidade.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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