Uma outra cidade nos é mostrada com o movimento Sou Quarteira

Nos anos 1980 representava o que de errado acontecia no Algarve. Agora existe um movimento, do qual faz parte o cantor Dino D’ Santiago, que tenta mostrar que é mais do que sol, praia e hotéis. Em Agosto realiza-se o festival Sou Quarteira.

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Quarteira terá um festival urbano com música, artes e exposições (na foto, fotografias que estarão pelas ruas da cidade montagem do público sobre fotografias de Mike Ghost
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"Heróis de Quarteira": as fotografias de Mike Ghost são uma homenagem às pessoas que têm contribuído para o desenvolvimento cultural e social da cidade montagem do público sobre fotografias de Mike Ghost
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montagem do público sobre fotografias de Mike Ghost

Não há como escapar. Principalmente nas décadas de 1980 e 1990, a cidade de Quarteira parecia simbolizar tudo o que de errado havia acontecido no Algarve, ao nível do planeamento urbano e não só. É Vítor Aleixo, presidente do município de Loulé, ao qual pertence a freguesia de Quarteira, que hoje o reconhece sem hesitações: “Representava o modo como uma cidade não podia acontecer. Era um exemplo negativo”, diz.

Mas mesmo nos contextos mais adversos existem pessoas com ideias, pulsares urbanos, existências inquietas que vão criando pequenos oásis de diferença. Foi isso que parece ter acontecido nesses anos. “Ver agora pessoas que cresceram nessa altura difícil e que se formaram aqui, orgulhosas da sua terra e com projectos para ela, significa muito”, dirá também, na apresentação do movimento Sou Quarteira, responsável pela realização do festival com o mesmo nome, que acontecerá à volta das músicas urbanas, nos dias 16 e 17 de Agosto, no Passeio das Dunas.

Do cartaz fazem parte nomes das novas sonoridades afro-portuguesas ou do hip-hop e R&B, num vasto leque de figuras como Branko, Allen Halloween, Jimmy P, Mayra Andrade, Plutónio, Eva Rap Diva, Mundo Segundo & Sam The Kid, Mina & Bryte, Mishlawi, DJ Kwan, Progressivu ou o londrino Kojey Radical. Mas mais do que um festival, o Sou Quarteira procura através de um conjunto de actividades mostrar o talento da cidade em várias áreas, do desporto, às artes ou à música. Quem o diz é o cantor Dino D’ Santiago que, em conjunto com outros três cúmplices (Inês Oliveira, Miguel Jacinto e Naomi Guerreiro), arquitectou o movimento.

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O cantor Dino D’ Santiago (primeiro à esquerda na foto) com Naomi Guerreiro, Miguel Jacinto e Inês Oliveira arquitectaram o movimento Somos Quarteira dr

“Um dia acordei para aí às 6 da manhã e escrevi uma canção, Sou Quarteira, onde reflectia sobre os locais, as pessoas e os pólos da cidade e quando a publiquei, aquilo gerou as mais diversas reacções, com pessoas que haviam crescido em Quarteira, e estavam na Austrália, Luxemburgo ou Londres, a identificarem-se com a canção”, lembra Dino. “Depois, em conversa com o Miguel, ele disse que devíamos era criar um movimento e foi daí que surgiu o conceito para um festival urbano em parceria com a câmara.” Para além da música, haverá uma exposição pelas ruas da cidade (Heróis de Quarteira), com fotografias de Mike Ghost, que acaba por ser uma homenagem às pessoas que têm contribuído de alguma forma para o desenvolvimento cultural e social da cidade e ainda um documentário, a estrear em Agosto, com os actuais agentes criativos da urbe.

Tudo começa pelo sotaque

No último ano, Dino tem andado nas bocas do mundo. Em Outubro do ano passado lançou o álbum Mundu Nôbu, recriando sonoridades cabo-verdianas (do batuque ao funaná) com o filtro da electrónica e por uma voz próxima dos territórios R&B, ao mesmo tempo que era citado em todo o lado como tendo sido um dos guias de Madonna pela Lisboa que acaba por estar espelhada no recente álbum da cantora, Madame X. A capital portuguesa é agora a sua cidade, mas nunca esquece as suas origens.

“Sinto-me tanto de Quarteira, onde nasci, como da ilha de Santiago, em Cabo Verde, de onde são os meus pais e onde estão as minhas raízes, ou do Porto, onde vivi dez anos, e de Lisboa, onde agora resido”, dizia-nos o ano passado. Mas foi em Quarteira que tudo começou. O mesmo aconteceu com o designer Miguel Jacinto, que com ele cresceu, e que depois de Paris está agora em Londres. “Crescemos juntos, depois cada um foi à sua vida, mas Quarteira continua a unir-nos”, afirma, recordando que a cidade nos anos 1990 tinha uma dinâmica que poucos reconheciam.

“Lembro-me de ir a concertos de punk-hardcore porque havia aqui um movimento forte. Nós fazíamos rap. Depois havia a escola do rock, o pessoal do skate e do graffiti e artistas de arte urbana. Houve sempre uma identidade cultural, que vem do facto de ser uma cidade dormitório e de aqui afluírem novas comunidades que geram novos diálogos. Quando há cruzamento de ideias diferentes há algo de novo que se cria. E isso tem de ser celebrado. Para além do mar ou da hotelaria, o que identifica esta cidade são as pessoas. Há aqui talento. É preciso dar-lhes visibilidade.”

Segundo Dino, é fácil os naturais de Quarteira identificarem-se entre si. Tudo começa pelo sotaque. “Em Tavira ou Lagos é diferente. Esta é a cidade do Algarve com mais misturas porque vieram para cá, na década de 1970, muitos são-tomenses, guineenses, angolanos, moçambicanos ou cabo-verdianos. O meu pai primeiro foi para Sines em 1974 e depois veio para aqui, para o bairro dos pescadores”, recorda. Será no espaço que outrora foi esse bairro que serão montados dois palcos para a realização do festival. “Nessa altura, era um bairro misto, com casas originais de pescadores, e com casas que eram barracas disfarçadas, com uma parte de betão e outra de látex. Era a única forma de não serem demolidas porque era tudo ilegal.” Foi aí que viveu até aos 15 anos. “No início existiu alguma tensão entre pescadores e toda aquela gente vinda das ex-colónias, mas depois a mistura foi acontecendo”, diz, recordando vários matrimónios entre pescadores e mulheres angolanas, por exemplo.

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Paredão em Quarteira. dr

Mas a vida não era só o bairro. Outro poiso habitual era em casa de Miguel. “Eu tinha um estúdio caseiro que funcionava como ponto de encontro”, lembra ele. “Foi aí que crescemos, a fazer música. Olhando para trás, acho que foi mais do que isso: [estúdio] funcionou como uma espécie de ilha que nos protegeu de tudo o que de negativo acontecia à volta. Principalmente no Inverno era difícil lidar com a inacção depois da agitação do Verão. A droga e a delinquência por vezes eram o escape. Para nós era a música.”

Agora, quem cresceu nesse período quer mostrar que a resiliência na criação de alternativas e a diversidade cultural fazem parte do que é a cidade hoje. É uma Quarteira aberta a diferentes sensibilidades que querem mostrar. “É por isso que escolhemos para o festival música que acaba por estar entre dois pólos, seja o rap com o jazz ou o kuduro com a electrónica”, conclui Miguel. “É essa mistura que representa Quarteira.”  

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