Desdescobrir o Brasil

Choramos ao constatar que estamos deixando de descobrir o Brasil, entregue à mais voraz e vil baixeza com que alguém alguma vez conspurcou a nossa língua, a nossa alma e o nosso coração.

Em outubro do ano passado o PÚBLICO publicou um artigo de opinião meu sobre o Brasil, intitulado “A Fábrica de Venezuelas” cujas ideias, infelizmente, se confirmaram. Diante do atual descalabro talvez pudesse escrever “A Fábrica de Venezuelas II”, de tal forma a situação política, econômica e judicial se degradou no Brasil desde a vitória eleitoral do sr. Bolsonaro. Apesar dos erros de apreciação sobre a atualidade política e judicial brasileira terem sido gerais em Portugal, com raras e honrosas excepções, não tenho porém o hábito de solicitar a contrição alheia. Resta a enorme tristeza de quem conhece bem o Brasil, que o texto que se segue pretende exprimir.

Não há, não, não há, quem possa se impedir de ficar extasiado diante do panorama da baía da Guanabara, do horizonte de morros se elevando em mansa desordem para o céu, como se as deusas do Olimpo tivessem eleito definitivamente aquelas águas e serras como seu boudoir, como se a natureza pudesse ali, sob os nossos olhos, se confundir com a pintura ou a gravura, com seus véus de bruma, seus verdes profundos, as pinceladas brancas das nuvens no céu azul, e o reflexo metálico das águas. Não há.

Não, não há quem possa evitar de se encantar com a delicadeza da música que se delonga de uma favela num morro ao longe, como que abraçando, enlevando alguém até ao arrebatamento, ou exala da porta de um boteco com pouco mais que umas mesas coxas e uns copos toscos, ou ainda do dedilhar subtil das mãos grossas de um camponês sobre o bojo de uma viola, ao luar.

E toda essa magia, descendendo do fruto do casamento do barroco com o barro, gorjeia na talha das igrejas de Minas, nas volutas do café fresco e escaldante aos lábios, no perfume do forno de lenha, do lombo assado e do churrasco capaz de inebriar homens e bichos, fazendo participar a natureza do espanto da sua inocência e beleza, como se o mundo estivesse apenas começando, naquelas matas, na volúpia das águas e das aves esvoaçando coloridas da Amazônia.

Ninguém, diante de um coqueiro numa praia bravia, da conversa mansa de um caboclo nordestino, com o porte altivo de uma palmeira imperial, pode esquecer os laços que nos unem àquela terra em que os amores, de rudes, adquiriram para sempre novos e brandos gestos e cores.

Por tudo isso choramos ao constatar que estamos deixando de descobrir o Brasil, entregue à mais voraz e vil baixeza com que alguém alguma vez conspurcou a nossa língua, a nossa alma e o nosso coração. Vamos cobri-lo com o manto da saudade, ao último grito de uma cuíca, até que possamos voltar a descobri-lo.

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