Condenação de oficial da GNR acusado de torturar cadastrados foi anulada

Caso remonta a 2011 e teve direito a um capítulo de relatório do Comité Europeu Contra a Tortura. Tribunal de Setúbal falhou formalidade durante julgamento de comandante de destacamento.

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Nuno Veiga/lusa

O Tribunal da Relação de Évora anulou a condenação a cadeia efectiva do oficial da GNR acusado de torturar quatro cadastrados quando comandava o destacamento de Santiago do Cacém, há oito anos. Os juízes desembargadores dizem que os seus colegas de Setúbal falharam uma formalidade durante o julgamento do militar, e que isso comprometeu as garantias de defesa do hoje major Carlos Botas.

Segundo o arguido, que continua ao serviço mas deixou de estar no terreno, com esta decisão tudo volta a ficar em aberto: “Possivelmente será realizado novo julgamento, no todo ou em parte. Ou deduzida nova acusação, se o Ministério Público assim entender, podendo até não haver acusação”, disse ao PÚBLICO por escrito. Carlos Botas nega ter agredido os quatro homens na madrugada de Junho de 2011 e recorda que o processo judicial chegou a ser arquivado, “por o Ministério Público ter entendido não haver matéria que consubstanciasse crime”.

E arquivado podia ter ficado logo em 2013, não se tivesse dado o caso de o processo ter caído no radar do Comité Europeu Contra a Tortura – que, no seu relatório desse ano, lhe dedica todo um capítulo, acusando as autoridades portuguesas de não terem levado a cabo uma investigação diligente e isenta. O Governo português encaixou a crítica, admitindo que o apuramento de responsabilidades levado a cabo pela GNR esteve longe de se revelar rigoroso e objectivo – e o processo acabou por ser reaberto dois anos mais tarde.

Os quatro meliantes, como lhes chama Carlos Botas num recurso que apresentou ao tribunal, eram velhos conhecidos das autoridades, apesar de o mais velho só ter 28 anos de idade. Naquela madrugada tinham ido uma vez mais trabalhar para Santo André e para Santiago do Cacém. Entre outras ocupações dedicavam-se ao furto de carros. E o recheio de uma máquina de tabaco com que se cruzaram no caminho também ficou mais leve.

Depois de uma caça ao homem a GNR apanhou-os na Comporta, já o sol estava quase a nascer. Foram cercados por um cabo e por um guarda. O comandante Carlos Botas, na altura com 32 anos, andava em perseguição dos ladrões noutro sítio e foi chamado ao local. O que se passou a seguir só quem lá esteve sabe ao certo, mas os juízes que o condenaram em Abril do ano passado a quatro anos e meio de cadeia efectiva não hesitaram em dar toda a credibilidade ao relato das alegadas vítimas e pouca ou nenhuma ao do arguido e dos seus subordinados, que asseguram que nada de fora do comum se passou. Dizem que aquilo que contam os GNR não bate certo com as provas existentes.

Magoaram-se com as algemas?

Ficou provado que quando Botas chegou à Comporta já os seus colegas tinham algemado os ladrões. Dois a dois, porque não tinham algemas suficientes para todos. Foi o comandante quem levou as que faltavam. Depois “pegou num chicote de fibra animal, vulgarmente conhecido por picha de boi, e desferiu várias pancadas nas costas, na região dorsal, nas nádegas, nos braços e nas pernas dos quatro detidos, ao mesmo tempo que os ameaçava: ‘Na minha zona ninguém rouba’, ‘Dêem o recado aos vossos amigos que esta zona é minha’, ‘Não me olhem nos olhos’”. Ainda de acordo com o acórdão do Tribunal de Setúbal agora invalidado, sacou de uma faca de mato que trazia numa bolsa e golpeou a nádega de um dos homens – que acabaram por receber tratamento no centro de saúde de Alcácer do Sal, até porque um deles tinha sofrido uma crise de asma. A ferida na perna foi confirmada em relatório clínico, mas o arguido sempre assacou este e outros indícios de violência ao facto de as vítimas se poderem ter magoado com as algemas, por resistirem à detenção. Uma justificação que os juízes de Setúbal consideraram pífia.

Na sequência do incidente Carlos Botas é colocado a trabalhar na divisão de estudos e análise de informação criminal da GNR. O seu percurso ascendente não pára: em 2016 é promovido a major, passando a auferir um salário de 1900 euros. “Não é por acaso que Portugal é bastante visado por entidades internacionais. Os seus agentes policiais e guardas prisionais vão muito para além do que devia ser a sua conduta”, assinala o presidente do colectivo de juízes que o condena.

O magistrado esqueceu-se, porém, de cumprir uma formalidade: embora o suspeito tivesse sido acusado de quatro crimes de tortura pelo Ministério Público, um por cada vítima, no pré-julgamento que se seguiu foi pronunciado por um só crime. Para o condenarem por quatro, como fizeram, os juízes de primeira instância tinham obrigatoriamente de o ter avisado antes de proferirem a sentença de que incorria em quatro delitos afinal. E não fizeram. Esta terá sido a primeira vez que um oficial da GNR foi condenado a prisão efectiva por tortura. 

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