A minha família e o futuro de Hong Kong

Hong Kong tornou-se outra vez uma sociedade onde crianças tão novas como as minhas precisam de pensar sobre a possibilidade de deixar a sua casa.

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A marcha da extradição de há uma semana foi a maior manifestação desde que Hong Kong passou para as mãos da China em 1997 JORGE SILVA/Reuters

Sou uma mãe de duas meninas com seis e oito anos. Aos domingos, as minhas filhas gostam de ir nadar. Mas no domingo passado, 9 de Junho de 2019, a nossa família juntou-se à marcha contra a lei de extradição. No dia anterior, expliquei às minhas filhas porque é que nós devíamos ir a essa marcha – se a lei passasse, as leis da China passariam a ser aplicadas a Hong Kong, e então deixaríamos de ser livres de dizer as palavras “8964” (4 de Junho de 1989) e talvez também deixasse de ser permitido ver o Winnie-the-Pooh na TV, já que o Presidente Xi Jinping não gostou que as pessoas o tivessem comparado a um urso fofo. Tínhamos de dizer à chefe do governo de Hong Kong, Carrie Lam, e aos seus ministros que não queríamos que esta lei fosse aprovada. Elas concordaram.

Juntámo-nos à marcha a meio caminho em Wanchai às quatro da tarde porque sabíamos que estaria demasiada gente em Victoria Park. A multidão era tal que mesmo às nossas cavalitas as crianças não conseguiam ver nem o fim nem o início da marcha. Depois de andarmos durante duas horas, primeiro debaixo de calor intenso e depois à chuva, chegámos a um engarrafamento entre Wanchai e Admiralty porque a polícia não abriu as ruas que levavam até à sede do governo, apesar do tamanho da multidão. As pessoas começaram a gritar “Abram as ruas”! As minhas filhas juntaram-se a este clamor. Quando finalmente passámos o engarrafamento, as minhas filhas insistiram em ir até à sede do governo, porque, como me disse a minha filha de seis anos: “Então, o governo não vai sair e falar connosco quando lá chegarmos?”

Eu sorri de forma amarga e respondi que não. Elas não podiam perceber por que razão o governo não parecia disposto a escutar todas estas pessoas. Então contei-lhes a história da Praça Cívica: há alguns anos atrás, alguns adolescentes ocuparam a Praça em protesto, e depois o governo decidiu vedá-la e desde então nós, cidadãos de Hong Kong, deixámos de poder entrar livremente na Praça. No nosso regresso a casa de metro, a minha filha de oito anos, de repente, virou-se para nós e disse: “Se a lei passar, então eu terei de emigrar.” A mais nova perguntou-lhe imediatamente: “Levas-me contigo?” Nós nunca discutimos com ambas a opção de emigrar. Nós nem sabíamos onde e através de quem a mais velha aprendeu a palavra “emigrar”. Mas Hong Kong tornou-se (outra vez, depois da vaga que antecedeu a entrega à China em 1997) uma sociedade onde crianças tão novas como as minhas precisam de pensar sobre a possibilidade de deixar a sua casa.

A 12 de Junho de 2019 fui até Admiralty. Logo à saída da estação de metro, dezenas de milhares de jovens tinham já ocupado a rua entre a estação e a sede do governo. Muitos estavam de pé na divisória entre a rua pequena e a rua principal chamando: “Vem, junta-te a nós, vem até à rua principal, precisamos de mais pessoas.” Eles não tinham mais de 21 anos. Mas pareciam tão crescidos e poderosos. Talvez seja isso que tenha levado o governo a ficar com medo.

As lágrimas começaram a cair à medida que ia caminhando entre as multidões em redor dos edifícios governamentais. Eles eram tão jovens, mas tinham sido obrigados a suportar um peso tão pesado. Debaixo de um sol abrasador, estavam sentados e em pé, apelando, distribuindo capacetes, luvas e toalhas entre todos. Fui até um posto que os jovens tinham instalado na área. Ouvi um apelo para mais capacetes. Perguntei ao jovem ali onde obter os capacetes – em quase meio século de vida nunca tinha comprado um único capacete.

No meu caminho à procura de capacetes, vi um grupo de seis jovens de pé no meio da passadeira de peões, aparentemente à espera de um amigo. Perguntei: “Eu acabei de sair da área de protesto, e ouvi que precisavam de mais capacetes. Gostaria de comprar alguns, mas não consigo carregar muitos. Não gostariam de se juntar a mim?” Não é comum, estranhos falarem uns com os outros nas ruas de Hong Kong. Mas eles disseram que sim. Eram recém-licenciados. Um deles era freelancer e outros tinham deixado os seus locais de trabalho com o apoio dos seus empregadores. Fomos a três lojas de ferragens diferentes. Na última, uma pessoa mais velha comprou todos os 80 capacetes disponíveis e convidou os jovens a levar o que conseguissem. Disse-lhes adeus e que continuaria a procurar por mais. Um jovem agradeceu-nos pelo “trabalho duro”. Decência humana numa loja de ferragens.

Finalmente, encontrei uma loja com vários capacetes disponíveis. Olhando entre os vários tipos de máscara, um jovem, seguro nos seus vintes, listou o material que precisava de obter. Disse-me “N95 é a escolha certa, já usámos da última vez porque filtra bem o gás”. Olhei para ele: “Gás lacrimogéneo?” Ele respondeu: “Sim, o pó, o gás. Fará o seu trabalho.” Segui o seu conselho. Trouxe os capacetes e deixei-os no posto de materiais na área de protesto.

Mal sabia eu que estes jovens decentes que conheci seriam atacados, uma hora mais tarde, pela polícia, com gás lacrimogéneo, bastões, balas de borracha e outras armas “não-letais”. Mal sabia eu que haveria banhos de sangue, espancamento e tiros disparados às cabeças com o objectivo de ferir seriamente os protestantes.

Esta não era a Hong Kong que eu conhecia.

As minhas filhas chegaram da escola e tive que lhes contar o que aconteceu, sem mencionar às cenas sangrentas. Expliquei que as pessoas tinham ocupado as ruas em frente da sede do governo em protesto e que a discussão tinha sido adiada. Mas que muitas pessoas tinham sido feridas e algumas tinham ido parar ao hospital depois de a polícia ter começado a remover de forma violenta os que protestavam. As minhas filhas ficaram chocadas. Sentaram-se em silêncio. Não conseguiam perceber tantas coisas. Nem eu.

O governo chamou-lhe um motim. E também está a tentar retratá-lo como um motim apoiado por “influências externas”. O pequeno número que tentou ser violento podia ter sido fácil e rapidamente controlado pela polícia. Mas eles decidiram ir atrás de todos sem excepção. De forma indiscriminada espancaram os que protestavam sozinhos e desarmados. Apontaram as suas armas aos rostos das pessoas. Atacaram jornalistas. A polícia tornou-se inimiga das pessoas.

Carrie Lam veio a público condenar os manifestantes considerando-os violentos, e comparou-os a crianças indisciplinadas, dizendo que era uma mãe benevolente que estava a fazer o seu melhor para lidar com crianças ignorantes.

Nós, as pessoas de Hong Kong, não somos filhos dela. Nunca precisámos de uma mãe, mas de autonomia judicial. Merecemos, pelo menos, um debate adequado sobre esta legislação e não que a chefe do governo vá empurrando as leis pelas nossas gargantas abaixo.

Não nos iremos calar. Esta será uma batalha que continuaremos a travar, por nós e pelas nossas crianças que ainda acreditam que um governo deve escutar as pessoas.

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