Violência doméstica. Localização das vítimas deve ser sempre sigilosa

Empregado da construção civil foi condenado a seis anos de prisão por tentativa de homicídio da mulher. Equipa de análise concluiu que a vítima, que somava já duas denúncias às autoridades, não foi protegida. A última agressão, aliás, ocorreu apenas três meses decorridos sobre o arquivamento do inquérito anterior.

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Agressões recomeçaram três meses após arquivamento do inquérito judicial Daniel Rocha (arquivo)

Todas as entidades que intervenham num processo penal de violência doméstica “devem preservar sempre, por óbvias questões de segurança, o sigilo da localização das respostas de acolhimento das vítimas”. A recomendação está claramente expressa no mais recente relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD).

Naquela que é a sexta análise à procura de perceber o que correu mal em processos de violência doméstica, os peritos debruçaram-se sobre um caso de homicídio na forma tentada de uma empregada de limpeza por parte do seu marido, trabalhador na construção civil. No decurso de um casamento que durou 35 anos, chegaram a ser instaurados dois inquéritos criminais por violência doméstica, tendo um sido arquivado e o segundo suspenso e posteriormente arquivado também, dado que o arguido cumpriu as obrigações que lhe tinham sido impostas, nomeadamente a proibição de deter armas de fogo e aceitar ser sujeito a avaliação psicológica e de alcoolismo.

Mas, após o segundo arquivamento, o marido reincidiu nos insultos à mulher, recusando-lhe o divórcio. Em 2017, apenas três meses decorridos sobre o arquivamento do segundo inquérito, foi visto e filmado a tentar afogá-la num rio. Colocou-lhe a mão sobre a cabeça, “empurrando-a para baixo, por forma a submergi-la completamente, segurando-a com força nos braços, no pescoço e na cabeça, com o intuito de a impedir de respirar e, dessa forma, lhe tirar a vida: “Hoje não tens santos que te acudam, hoje é o teu último dia”, gritava.

GNR alertada pelo Facebook

Porque o episódio foi filmado por uma testemunha, que interrompeu a agressão e posteriormente publicou o vídeo no Facebook, a GNR teve conhecimento do ocorrido. No dia seguinte, militares desta força policial deslocaram-se a casa da vítima e aconselharam-na a mudar-se para uma casa abrigo, o que a mulher recusou por receio de que o marido a matasse, caso se ausentasse de casa.

Segundo a mulher relatou então, o marido controlava-lhe todos os movimentos diários, impedindo-a até de comunicar com os vizinhos. No final, acedeu a permanecer numa casa abrigo, de onde sairia seis dias depois, quando soube que o marido fora detido preventivamente, apesar de ter sido descrito no meio em que vivia como alguém “com um comportamento adequado e sem problemas do foro criminal”.

Após regressar a casa, a vítima foi acompanhada por uma instituição particular de solidariedade social, cujo relatório lhe aponta sintomas vários de vitimização: além do medo, do desconforto e da ansiedade, a mulher ia constantemente à janela, sempre que ouvia o ladrar dos cães ou o barulho de um carro ou mota.

Sobre a sua experiência, a mulher considerou ser injusto ter de ser sempre a vítima a sair de casa. Por outro lado, declarou que só soube do andamento do processo “pelos jornais e pela televisão”, sendo que a nomeação do advogado que requereu só foi feita “três ou quatro dias antes do julgamento”. Acrescentou recear o que lhe poderia acontecer quanto o marido saísse da prisão, sendo que foi, entretanto, contactada por uma responsável do estabelecimento prisional que lhe disse que o marido podia sair durante dois dias e a perguntar se aceitava recebê-lo em casa, apesar de o divórcio entre os dois ter sido entretanto decretado.

“O que não deve nunca acontecer relativamente a qualquer vítima de violência doméstica é ser contactada pelos serviços prisionais para lhe perguntar se está disposta a receber em sua casa o seu agressor, que está a cumprir pena de prisão, seja porque foi requerida uma saída precária ou porque está a ser analisada a concessão de liberdade condicional”, censuram os autores do relatório.

Agressor cola-se à porta da instituição

Por outro lado, nas peças processuais dos diferentes inquéritos foi identificada a localização da instituição em que a mulher esteve acolhida, bem como o nome da técnica que a apoiara. Na sequência do inquérito motivado pela primeira agressão com direito a queixa nas autoridades, a instituição para onde a vítima fora encaminhada chegou por isso a ser nomeada por um jornal local, o que permitiu que o agressor se postasse à porta, rogando à vítima que regressasse a casa. “Não sendo uma estrutura especializada para acolher e proteger estas vítimas, [a vítima] sentiu-se pressionada pelo mal-estar que a situação criou na instituição e não teve o apoio de que necessitava para romper com o ciclo de violência”, acusa ainda o relatório.

Acresce que, enquanto viveu com o agressor, a vítima disse ter sido muito criticada pela comunidade por ter apresentado queixa contra um marido cujas agressões começaram logo a seguir ao casamento. Por isso, a EARHVD considerou ser “absolutamente necessário, em particular nos locais onde tenham ocorrido homicídios em contexto de violência doméstica, que se desenvolvam campanhas de sensibilização a nível local que promovam a desconstrução de crenças, mitos e estereótipos sobre a violência contra as mulheres”.

Entre duas notas positivas – a diferença para melhor no tratamento por parte da GNR que a vítima reportou e, por outro lado, o facto de os profissionais de saúde que a atenderam a terem encaminhado para entidades de apoio a vítimas de violência doméstica -, a EARVHD censura o facto de, numa história de violência conjugal com uma trajectória de vários anos, o acompanhamento e apoio por parte das respostas de acolhimento se ter restringido aos momentos em que estavam pendentes os inquéritos judiciais, o que não se mostrou suficiente para garantir à vítima “capacidade de romper com o ciclo de violência em que estava amarrada”.

Por outro lado, resultou claro que os inquéritos anteriores não deveriam ter sido suspensos, por não tem sido a “acauteladas a exigência de prevenção que é o pressuposto da utilização deste instituto do processo penal”.

Outro aspecto a censurar prende-se com a falta de cruzamento entre os técnicos que acompanharam os agressores e aqueles que acompanharam a vítima, tendo em vista o delineamento de uma estratégia conjunta e complementar”, capaz de “contribuir para a prevenção da reincidência”, conforme se lê no relatório, cujos autores apontam ainda o facto de a vítima ter tido uma “insuficiente informação e compreensão sobre o desenvolvimento e o destino dos processos em que participou”. E este desconhecimento – reforçam os peritos - “tem um efeito negativo sobre o sentimento de segurança e a confiança com que a vítima encara a actuação policial e judiciária”.

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