João Miguel Tavares atira ao mito luso-tropicalista e atrapalha dois Presidentes

No seu último discurso como presidente da comissão organizadora das comemorações do 10 de Junho, o jornalista defendeu que Portugal tem a “responsabilidade histórica” de dar igualdade de oportunidades aos descendentes das ex-colónias.

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João Miguel Tavares foi o primeiro a falar na cerimónia das comemorações do 10 de Junho no hotel da Praça Amílcar Cabral LUSA/ANTÓNIO COTRIM

O Presidente de Cabo Verde engasgou-se, o de Portugal justificou-se. Depois de ouvirem o último discurso de João Miguel Tavares enquanto presidente da comissão organizadora das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, o desconforto pairava no ar.

No Mindelo (São Vicente), o comentador atirou ao “mito luso-tropicalista” e à “excepção portuguesa” do colonialismo e defendeu que Portugal tinha a “responsabilidade histórica” de garantir igualdade de oportunidades aos descendentes dos naturais das ex-colónias. Numa frase: “Portugal tem de conseguir abrir-lhes as portas do elevador social em vez de continuar a oferecer escadas para lavar”.

O segundo dia das comemorações do 10 de Junho tinha sido longo. Depois de Portalegre e Cidade da Praia, já em Cabo Verde, na segunda-feira, dois Presidentes da República e dois primeiros-ministros, restantes autoridades e comitivas rumaram cedo à ilha de São Vicente para cumprir uma intensa agenda oficial: visitas a exposições, uma arruada, almoço na fragata Nun’Álvares, um jogo de futebol infantil na presença de um dos heróis do Euro 2016, o luso-cabo-verdiano Eliseu, um desfile militar e, por fim, a sessão comemorativa com a comunidade portuguesa e de dupla nacionalidade da cidade, com condecorações a dois homens da cultura, Germano de Almeida e João Branco.

A cerimónia, bem aprumada, começou tarde na esplanada de um bonito hotel da Praça de Amílcar Cabral. João Miguel Tavares, o primeiro a falar, começou por lembrar que, há apenas 45 anos, Cabo Verde ainda era Portugal e foi directo ao assunto: “Profundos são os laços que se criam entre os povos, mesmo quando manchados pela escravatura ou pelo racismo. Estamos juntos, apesar do nosso passado e por causa dele”.

Ali, de onde saiu boa parte da comunidade cabo-verdiana que vive em Portugal, falou da nova geração mais qualificada que está “aos poucos a criar uma massa crítica suficientemente interventiva para começar a perturbar o mito do luso-tropicalista e a herança da suposta excepção portuguesa que nunca o foi nas antigas colónias e que também não o foi, nem o é, em Portugal”.

Essa nova geração, no entanto, é reduzida numa comunidade “ainda pouco integrada”. O problema, disse o jornalista, “não é tanto ainda haver tantos cabo-verdianos de 40 ou 50 anos a limpar casas ou a construir estradas em Portugal. O verdadeiro problema surge quando os seus filhos de 20 anos, já criados em Portugal, continuam a limpar casas e a construir estradas e edifícios”. “Isso significa que a escola pública portuguesa não lhes está a dar tanto quanto devia e que Portugal tem que conseguir abrir as portas do elevador social em vez de continuar a oferecer escadas para lavar”, sublinhou.

Apesar do tom, João Miguel Tavares não quis embarcar na vitimização generalizada da comunidade inteira nem defendeu a política de reparações pelo passado colonialista defendido por alguns historiadores e intelectuais. “Nem tudo é sempre culpa dos outros. As verdadeiras reparações fazem-se ao longo de uma vida”, considerou. Mas defendeu que Portugal tem “uma responsabilidade histórica” de garantir igualdade de oportunidades, sobretudo para com os jovens que descendem de habitantes das antigas colónias. “As reparações que lhe são devidas são uma vida digna, educação de qualidade, acesso facilitado à cidadania portuguesa e o combate permanente à discriminação”, disse.

Um dos instrumentos para essa integração, acrescentou ainda, seria a “oficialização e padronização do crioulo enquanto instrumento primordial de integração e sucesso escolar dos cabo-verdianos e seus descendentes”. Isto porque, na sua opinião, o crioulo é ainda hoje, ao fim de quatro séculos, “o grande traço identitário cabo-verdiano e fonte da coesão social”, mas também representa “um gesto de rebeldia” e “uma vitória sobre o colonialismo português”, ainda que a sua existência derive da língua portuguesa. “O crioulo é como o filho inesperado de uma relação complicada que cresce viçoso apesar dos problemas dos seus pais”, ilustrou.

“A história aproxima-nos, a diversidade enriquece-nos. Só fica a faltar que esta conversa de salão se torne uma realidade onde ela realmente importa: não nas belas esplanadas de hotel, mas nas ruas e nos bairros pobres, onde a palavra irmão é muito mais necessária, mas também muito mais difícil de dizer”, concluiu.

Os embaraços presidenciais

O discurso fora incómodo, mas nenhum dos dois Presidentes fugiu a ele. “Eu ouvi com muita atenção e muito gosto o discurso do senhor presidente da comissão organizadora”, disse o chefe de Estado do país anfitrião, embora se tenha engasgado quando dizia que, depois de o ouvir, deitou fora o “papelinho” onde trazia as notas da sua própria intervenção. Acabou por confessar: “O discurso sobressaltou-me um pouco, mais o cidadão que o Presidente”.

Não que Jorge Carlos Fonseca sinta dever alguma coisa a esse passado colonial: “Sou insuspeito, fui combatente pela independência e pela democracia”, lembrou. Até concorda que tenha havido “um percurso no passado de costas voltadas”, e que “muitos cabo-verdianos têm problemas de integração” em Portugal, embora considere “discutível que o crioulo seja uma espécie de resistência, de vingança”.

Mas para o Presidente de Cabo Verde, ver “cidadãos comuns nas ruas [do Mindelo] a abraçarem e beijarem o Presidente de Portugal” é a prova de que “os portugueses e cabo-verdianos se dão bem, gostam uns dos outros, e isso é o mais importante”.

Já o Presidente português precisou de mais de meia hora para não ir directo ao assunto. Começou por explicar o formato das comemorações do 10 de Junho e justificar uma a uma as escolhas que fez no passado, sem chegar a dizer exactamente por que escolheu João Miguel Tavares este ano (embora já o tivesse feito antes). E acabou por dizer que o seu discurso desta noite foi mais sobre a realidade dos cabo-verdianos em Portugal do que dirigido à plateia à sua frente: “Admito que tenha sido uma perplexidade para os portugueses que vivem aqui”, reconheceu. Mas justificou: “Esta noite estivemos a falar como se estivéssemos numa reunião de família”.

E nessa “conversa de família”, Marcelo Rebelo de Sousa considera que todos acabaram por dizer, “em tons diferentes”, que “há no passado coisas que correram bem e coisas que correram mal”. “Quando falamos no passado, temos que reconhecer que deixou traços e muitos deles foram marcados pela natureza da relação colonial”, disse, acrescentando que “não é possível olhar para a história e dizer que só se aceita uma parte”. Mas “o passado foi o que foi. É uma realidade”. Marcelo prefere olhar para o presente e para o futuro. E para a plateia que tem à sua frente.

“No presente também há coisas boas e outras menos boas. Das boas já não é preciso falar. Das más: umas tarifas aéreas diferentes, questão sensível no Mindelo, eu sei”, disse, arrancando uma salva de palmas aos ouvintes. Depois voltou a elogiar a comunidade cabo-verdiana em Portugal, mas lamentado “a falta de representatividade política das várias comunidades” estrangeiras no país, sobretudo da CPLP.

Mas o 10 de Junho também é futuro. E para o ano, já está confirmado, as comemorações vão ser ainda mais difíceis, pois serão repartidas entre a Madeira e a África do Sul.

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