Estados (des)unidos da Europa

Será difícil à Europa competir com o domínio que terão outras grandes potências como a China, EUA e Rússia em muitos campos. É noutro tipo de grandeza que poderá residir o seu papel.

“Se a Europa não conseguir falar por si neste mundo, agora que já não está sob a proteção da América, será dominada por outros. E a única forma de a Europa ter uma voz forte é unindo-se.  Este excerto é de uma entrevista deste fim-de-semana à analista norte-americana Anne Applebaum que merece ser lida.

Ao lê-la não pude deixar de recuar à passada quinta-feira e relembrar uma vez mais o aniversário de desembarque da Normandia. Será difícil encontrar na história europeia momento tão nítido desta proteção americana. É ali, antes do próprio discurso pós-guerra de Churchill, que se escreve o primeiro esboço de uma futura UE ou de uns Estados Unidos da Europa como era então pensada. Não sabemos o que teria sido a nossa própria história nacional sem o papel dos americanos e de outros aliados. Apenas sabemos que a Segunda Guerra Mundial teria sido bem mais longa, devastadora, e que a história desde os nossos bisavós aos nossos pais seria diferente.

Ao longo da construção da União Europeia, contámos sempre com a proteção da América que refere Anne Applebaum. Viveu-se uma aliança com base nos valores e princípios que aproximavam mais do que as diferenças que afastavam. Nunca foram poucas também. Algumas vezes discordou-se publicamente. Noutras, com o peso da história nos ombros e a tal proteção na mente, tomaram-se decisões erradas em nome disso mesmo.

Das mais recentes e trágicas, a segunda invasão do Iraque que encontrou na França uma oposição praticamente exclusiva, mas sem efeito. Com a distância física e temporal, pode parecer mais um “pormenor” mas, na realidade, é mais um fator que ajuda a explicar o aumento da insegurança interna e externa no continente. Tal como outros, explica ainda a quebra de influência da economia e política europeia no mundo ao longo dos últimos anos.

Todavia, não se deve menorizar alguns dos efeitos positivos desta aliança no século XXI, seja com Bush, Obama, Trump e seguramente com quem vier depois. Devemos é entender a necessidade de uma União Europeia com ênfase maior na nova ordem mundial. Para o ter parece-me imperativo entender a nova política externa desta América em transformação. Uma nação mais virada sobre si mesma e sobre os seus interesses comerciais e económicos, em vez de qualquer objetivo hegemónico ou de qualquer preocupação com a democratização do mundo. Uma transformação que se inicia antes de Trump, logo após a falhada primavera Árabe, e que perdurará bem depois do atual Presidente americano.

Disto resulta hoje uma União Europeia que manterá sempre os Estados Unidos como um dos seus grandes aliados no mundo, mas que forçosamente deixará de o ter como bússola de atuação na política e economia mundial. Chegamos assim a uma altura em que os Estados-membros da UE terão de atuar em conjunto. Pensar à escala continental em vez de nacional. Isto deve representar um ponto de viragem crucial. Sobretudo, quando o contrário é caminhar para a irrelevância e encher os balões dos populistas.

Uma área dessa necessidade conjunta e pouco comentada nos últimos dias é a regulação da tecnologia. Sob pena de não deixar a hegemonia do sector à China e aos EUA. Se a UE já dita as regras globais para a privacidade digital, como ficam empresas como a Huawei? São banidas dos Estados-membros (?), reconfiguradas (?), ou assobia-se para o lado?

Para lá dos interesses comerciais do momento, é ingénuo não entender que as afirmações políticas e económicas da UE também passam pela atuação conjunta nisto.

Finalmente, uma nova política comum de defesa. É ilusório achar que as garantias de segurança física e económica ficam asseguradas sem um aumento significativo da capacidade militar. Ou sem a criação de um exército europeu.

Será difícil à Europa competir com o domínio que terão outras grandes potências como a China, EUA e Rússia em muitos campos. Existe toda uma complexidade inerente ao projeto europeu e a processos democráticos com que não se deparam estas potências. Mas é evitável que a União Europeia seja dominada por essas mesmas potências, conforme refere Anne Applebaum.

É noutro tipo de grandeza que poderá residir o seu papel. Porventura, parecido ao que era a dos Estados Unidos há mais de 20 anos. Para ambicioná-lo, só com mais Europa e propósito comum.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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