Juiz diz que depoimentos de Salgado não valem como prova na Operação Marquês

Em causa estão declarações do antigo banqueiro no processo Monte Branco e no colapso do BES apresentados como provas da acusação para sustentar alegada falsidade de contrato que justifica transferências de 25 milhões de euros para Zeinal Bava.

Foto
Ricardo Salgado Rui Gaudêncio

O juiz Ivo Rosa considerou, num despacho assinado há dias, que dois depoimentos do antigo banqueiro Ricardo Salgado, um no processo Monte Branco e outro no inquérito ao colapso do Banco Espírito Santo (BES), apresentados como provas pelo Ministério Público, afinal não podem valer como prova na Operação Marquês.

Esta é a razão apresentada por Ivo Rosa, que está a presidir à instrução da Operação Marquês, uma fase do processo penal que avalia apenas se há indícios suficientes para levar os acusados a julgamento, para chamar a depor o ex-banqueiro Ricardo Salgado, apesar de este nem sequer ter pedido a abertura desta fase facultativa do caso. Num despacho datado de 3 de Junho, há exactamente uma semana, o juiz marcou a audiência de Ricardo Salgado para as 14h de 8 de Junho. A reacção da defesa do ex-banqueiro indicia que este estará presente e falará, apesar de se poder remeter ao silêncio.

Estas declarações de Salgado feitas noutros dois processos eram um elemento apresentado pela acusação para sustentar a alegada falsidade de um contrato assinado entre a Espírito Santo Enterprises, conhecida como o alegado “saco azul” do Grupo Espírito Santo (GES), e o antigo administrador da PT, Zeinal Bava, para justificar o recebimento de um valor global de 25,2 milhões de euros transferidos para contas do gestor no banco UBS, em Singapura e na Suíça, entre 2007 e 2011.

O Ministério Público defende que as três transferências se trataram de “luvas” pagas por Ricardo Salgado para que Zeinal Bava beneficiasse, como administrador da PT, os interesses do GES. O gestor nega essa tese e justifica o recebimento do dinheiro com um contrato que está datado de 20 de Dezembro de 2010. O documento prevê um financiamento até um máximo de 30 milhões de euros para Bava adquirir em nome da ES Enterprises – uma empresa que não consta do organigrama oficial do grupo e, por isso, escapava ao controlo da supervisão – acções da PT no âmbito de um programa de incentivo aos quadros superiores que assegurasse a sua permanência na gestão daquela operadora de telecomunicações.

Num dos depoimentos que Ivo Rosa não aceita como prova, realizado em Julho de 2015, Ricardo Salgado fala do contrato que o Ministério Público diz ser fictício, mas apenas o correlaciona com duas das transferências recebidas pelo administrador da PT: uma de 8,5 milhões de euros feita a 21 de Dezembro de 2010 e outra de dez milhões transferidos a 20 de Setembro de 2011. Questionado sobre os 6,7 milhões de euros pagos em Dezembro de 2007, o banqueiro disse não se lembrar do que se tratava.

Saiba quem são os arguidos da Operação Marquês e de que estão acusados

Ministério Público acusou em Outubro de 2017 um conjunto de 28 arguidos: 19 pessoas e nove empresas. Imputa-lhes um total de 188 crimes.

Outra é a versão de Zeinal Bava – que em 2016 devolveu à massa falida da Espírito Santo Internacional 18,5 milhões de euros –, que garante que os 6,7 milhões já foram transferidos ao abrigo daquele acordo, feito no final de 2006 apenas de forma verbal e formalizado quatro anos mais tarde. No contrato, contudo, não há nenhuma referência à transferência feita em 2007. Aliás, segundo o Ministério Público, os 6,7 milhões de euros que Bava recebeu alegadamente para comprar acções da PT – que o gestor admite nunca ter adquirido –, em nome do Grupo Espírito Santo, foram declarados como rendimento do administrador da PT em 2010, em Portugal, ao abrigo do terceiro Regime Especial de Regularização Tributária (RERT). Bava garante que não incluiu esse montante no RERT. O próprio Ministério Público, numa outra parte da acusação onde contabiliza as vantagens indevidas pelos vários arguidos, também diz que o gestor omitiu esses valores em sede de regularização especial, numa clara contradição com o que alegara antes. 

O facto de não valorar como prova os depoimentos de Ricardo Salgado noutros processos é justificado por Ivo Rosa com o facto de dois artigos do Código de Processo Penal referirem que as declarações dos arguidos, que actualmente já podem ser usadas em sede de julgamento mesmo que o suspeito se mantenha em silêncio, são válidas apenas nos depoimentos feitos “no processo”. Ora, como estas foram feitas noutros inquéritos não podem ser valoradas, sustenta o juiz.

“Na impossibilidade de valorar como prova” estas declarações de Salgado, sustenta Ivo Rosa no despacho consultado pelo PÚBLICO, tem como consequência “a impossibilidade de utilizar, nesta fase processual, essas declarações para formar qualquer juízo de indiciação”, lê-se no documento.

Apesar de Salgado não ter pedido a abertura de instrução, o juiz lembra que Zeinal Bava o fez e, portanto, precisa de avaliar se há indícios suficientes para levar o administrador da PT a julgamento. Na hipótese de o juiz decidir não considerar indiciada a corrupção imputada a Bava, Ricardo Salgado poderá beneficiar disso, já que consta como o alegado corruptor. Tal permitirá apagar esse crime das acusações de Salgado, que não poderá ser julgado pelo mesmo.

Xeque ao processo?

Esta decisão de Ivo Rosa é mais uma que parece ameaçar, pelo menos em parte, a acusação da Operação Marquês, que tem como principal arguido o ex-primeiro-ministro José Sócrates, a quem são imputados 31 crimes, três dos quais de corrupção. Recorde-se que em final de Maio foi noticiado um outro despacho de Ivo Rosa que lançava dúvidas sobre a legalidade de algumas provas que foram integradas no processo da Operação Marquês mas recolhidas numa outra investigação, neste caso ao investimento de quase 900 milhões de euros da PT na Rioforte, uma empresa do GES, pouco antes do grupo colapsar. Em causa estão emails e outros ficheiros informáticos apreendidos em buscas realizadas às instalações da PT e à consultora PWC, em Janeiro de 2015.

O problema é que o Ministério Público pediu que o juiz de instrução Carlos Alexandre, do Tribunal Central de Instrução Criminal, se considerasse incompetente neste caso – o que este aceitou em finais de 2014, considerando outro tribunal competente. Mesmo assim, Carlos Alexandre determinou a realização das buscas, consideradas urgentes pelo Ministério Público. Neste caso, Ivo Rosa ainda não tomou nenhuma decisão final, pedindo, antes de o fazer, aos advogados e Ministério Público para se pronunciarem. A esmagadora maioria das defesas pede que Ivo Rosa considere inválidos os elementos obtidos naquelas buscas, um desfecho rejeitado pelo Ministério Público. Há pelo menos uma defesa que admite que parte da prova possa ser salva. com Ana Henriques

Sugerir correcção
Ler 48 comentários