Esta marcha faz-se da vontade que supera qualquer limitação. “Gosto de dançar e gosto de tudo”

É nas Casas de Alapraia que se vai preparando uma das marchas inclusivas que partipa nas marchas populares de Cascais. O tema deste ano é Ambiente e são 25 os participantes - entre utentes, funcionários e voluntários.

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O passeio, na zona da Alapraia, no Estoril,​ vai-se enchendo de cadeiras para quem não participa mas quer ver. As nuvens vão chegando. “Bora lá, antes que o céu faça uma surpresa”, ouve-se. Começa a música e os pares avançam, lado a lado, com os passos já decorados. Nem todos estão acompanhados, mas nem por isso deixam de entrar na dança. Mãos na cintura e cabeça levantada, para a frente e para trás, como se já tivessem nascido com a coreografia aprendida.

Da coluna ouvem-se melodias típicas das marchas populares, ao som das quais o ensaio se vai fazendo, mas a letra conta outra história. “Vem salvar este planeta que está a ficar doente”, ecoa pela rua. Por agora, uma coluna de som chega, mas no domingo não vai ser precisa. Uma banda própria vai acompanhar a terceira marcha inclusiva das festas populares de Cascais e garantir que esta se desenrole sem “avarias” tecnológicas. Acabam a música em linhas horizontais a olhar em frente, sabem também quem vem a seguir. A fase final da apresentação desta marcha inclusiva, da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM) de Lisboa, foi escrita e pensada por Paula Teixeira, a cantora e intérprete de língua gestual portuguesa que é, também, madrinha da iniciativa. Dançam sempre com a música mas nem sempre com a coreografia, que já parece mais complicada, e nada os desmotiva.

Acaba a primeira ronda, voltam ao início. Vão falhando e repetindo sem medo de falhar outra vez: afinal de contas, o mais importante é continuar a dançar. Voltam a pegar nos arcos, a soltar e deixar ficar pelo chão. 

 “A música é transversal”

“Tudo o que implica música e movimento é uma coisa que eles adoram”, conta Catarina Simões, coordenadora nas Casas de Alapraia, sobre os 25 utentes que conhece bem. “A música é transversal, toda a gente gosta de música aqui”, continua.

Mafalda é uma das clientes do lar residencial no Estoril (uma das casas de acompanhamento dos cidadãos deficientes mentais em fase adulta da APPACDM​) e tem uma paixão especial pela música e pela dança. A coordenadora explica que é muito expressiva e que capta os movimentos muito facilmente. Já participou em vários workshops e foi até convidada a fazer uma audição para uma companhia de dança.

Ao PÚBLICO, Mafalda confirma: “Adoro música e dança”. É a sua parte preferida nas marchas: aprendeu todas as coreografias e chega até a ensinar os outros. Já Jorge vai participar este ano pela primeira vez nas marchas. “Gosto de dançar e gosto de tudo, mas o que gosto mais é hip hop”, conta, com entusiasmo.

Estão deslumbrados desde a edição inicial, há três anos, afirma Catarina. A ânsia para a época das marchas sente-se a cada ano e não aceitam que ela não se realize. Ensaiam duas vezes por semana para garantir que domingo tudo esteja no sítio. As nuvens cedem e começa a chover quando já repetem as coreografias pela quarta vez, mas não faz mal. Só mais esta, depois de todas as outras, e não há frio que empate o calor de verão que se sente nas Casas de Alapraia.

O vento sopra e o céu está cinzento, mas quase parece Verão. Pelas 14h já toda a gente tinha descido e foi à rua receber quem visita. Os beijos e abraços são quase imediatos, não importa a quem, a vontade é somente a de celebrar e agradecer pela presença e curiosidade. O ambiente é leve e animado, as preocupações são aquelas e mais nenhumas.

Ouve-se outra vez um “bora!”. É o professor de dança. Telmo Falcão tem estado a trabalhar com o grupo desde o início das preparações da marcha – que arrancaram em Abril – e já tem preparadas as coreografias. O tema deste ano é o Ambiente e nesta marcha inclusiva tudo está organizado para passar uma mensagem de consciencialização.

“É fácil trabalhar quando há vontade”

Recebeu o desafio de preparar a coreografia e ensiná-la já há vários meses e admite que o mais difícil foi simplificá-la. “Inicialmente idealizei na minha cabeça uma coisa muito mais complexa e depois fui aos poucos simplificando para conseguir chegar até eles”, explica o professor de dança.

A receptividade foi imediata e muito positiva. O grupo começou a corresponder “cada vez mais e cada vez melhor” e, acrescenta o coreógrafo, foi a vontade deles que permitiu que a coreografia se fosse construindo até ao produto final. “É fácil trabalhar quando há vontade, e da parte deles há imensa”, sublinha.

feedback das pessoas com quem trabalha é o que mais compensa, admite, e sai de cada ensaio “com o coração cheio”. Reconhece-lhes a alegria e entusiasmo em cada momento e aponta: “Superam-se porque a vontade deles é mais forte do que qualquer das limitações que têm”.

O ensaio podia ser em qualquer salão ou sala, mas não querem fechar-se em lado nenhum. Entre as Casas de Alapraia faz-se um larguinho de alcatrão, onde os carros podem dar a volta, mas hoje não há estrada, nem carros, nem casas. O larguinho transforma-se no Mercado da Vila, que fica em Cascais, e onde vão ser apresentadas todas as marchas populares que vão desfilar pelas ruas da cidade no Domingo.

 Enquanto a música não toca ficam todos em fila, prontos para começar a dançar. Vão falando uns com os outros, chamando quem falta, olhando em volta curiosos e alguns até tentando lembrar os passos de dança que vão ter de fazer a seguir. Não vão participar só os clientes do centro: antigos colaboradores, actuais funcionários e voluntários também se juntam à festa, que é feita de e para todos.

Alguém pega nos arcos e vai distribuindo pelo espaço, com a certeza de virem a ser necessários logo a seguir. São coloridos: verdes, azuis, verdes outra vez. Servem para os ensaios, mas os verdadeiros ainda não chegaram. Segundo Catarina Simões, que faz a coordenação do lar residencial, todos os fatos e adereços foram produzidos com materiais recicláveis – cedidos por todos os centros da APPACDM – e todos alertam para o problema da poluição ambiental (com foco na poluição marítima).

APPACDM não atua só por ali no Estoril: está espalhada por três concelhos diferentes – Lisboa, Almada e Cascais. Nasceu há 57 anos e presta, de momento, apoio a 659 pessoas, desde o infantário até à fase adulta. O objectivo principal é a inserção das pessoas com deficiências mentais na sociedade, e é também nesse sentido que surge a marcha inclusiva — e já não é a única. Texto editado por Helena Pereira

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