Morreu Dr. John, o rei do rock voodoo

O pianista e compositor foi vitimado por ataque cardíaco na sua cidade natal de Nova Orleães. Desaparece um feiticeiro da música, que se auto-intitulava o “viajante da noite”.

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Dr. John num concerto em Nova Orleães em 2004 Cheryl Gerber/ AP

“Todos os músicos se influenciam uns aos outros. Não creio que ninguém toque algo que seja totalmente novo. Toda a música já foi tocada.”

Esta citação com que o site da Academia dos Grammy assinala o desaparecimento de Dr. John define bem o seu lugar no mundo da música popular da segunda metade do século XX: o músico, vocalista e produtor apreendeu a música na tradição mais noctívaga e genuína da sua cidade natal, Nova Orleães; e sem ele talvez Van Morrison ou os Rolling Stones, por exemplo, não tivessem sido os mesmos…

Dr. John, “nome de guerra” de Malcolm John McRebennac, Jr., morreu ao final do dia de quinta-feira, de ataque cardíaco, na sua Nova Orleães natal. A notícia foi divulgada pela família no Twitter, e a informação sobre a sua idade é desencontrada: terá nascido no dia 20 de Novembro de 1940, como refere a página dos Grammy, ou 1941, como referem as agências noticiosas?

Trata-se, no entanto, de uma questão de pormenor na longa e excitante carreira de seis décadas de um músico que, visto muitas vezes como figura de segundo plano – até porque foi frequentemente usado como pianista de estúdio, e também de palco, pelas grandes figuras, dos já citados Morrison e Stones até Frank Zappa, Sonny & Cher, The Band e mesmo os Beatles –, acabou por criar uma marca com nome próprio.

Chamaram-lhe “o viajante da noite” de Nova Orleães, e ele apreciou de tal modo a alcunha que a aproveitou para identificar o seu site.  “Chamavam-me ‘Dr. John, o Viajante da Noite’. Com um saco de mojo na mão, regressando de uma viagem no pântano, eu sou o último dos homens gris gris [que possui o amuleto da felicidade]”, disse um dia o músico, que mais tarde seria mesmo ordenado sacerdote da igreja Voodoo&Witchcraft.

Mas Dr. John foi também o rei do funk-rock voodoo, uma espécie de “carregador de piano” que, na senda de um Fats Domino, fez entrar a tradição do blues, do jazz e do boogie woogie na grande viagem do rock'n'rol. “O seu modo funky de combinar estilos musicais e a sua personalidade imaginativa ajudou a diversificar o som de Nova Orleães”, disse, a propósito, Neil Portnow, presidente da Academia dos Grammy – prémio que Dr. John haveria de conquistar por seis vezes, desde o de Melhor Performance Vocal de Jazz em duo com Rickie Lee Jones, em Makin’ Whoopee (1989), até ao de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo, com City that Care Forgot (2008).

A carreira musical de Dr. John começou na década de 50, quando era ainda guitarrista (mas também já compositor) e participou em discos com os seus mestres, o professor Longhair, Art Neville e Allen Toussaint. Um acidente no decorrer de uma escaramuça num motel da Florida no Natal de 1961 leva-o a perder momentaneamente o uso do dedo anelar da mão esquerda, obrigando-o a regressar ao piano, que tinha aprendido a tocar ainda criança com uma tia, antes de chegar à classe do professor Longhair. É já ao piano que na década de 60 participa na gravação de discos de Van Morrison, Aretha Franklin, Phil Spector e dos Stones. E é também no final dessa década que grava Gris Gris (1968), o primeiro de quase três dezenas de álbuns que irão também deixar o seu rasto na história do rock – o último tendo sido publicado em 2016, Musical Mojo Of Dr. John.

Pelo meio, assinou discos como Locked Down (2012), que o Ípsilon, pela mão de Mário Lopes, incluiu na lista dos melhores discos pop desse ano. “Todo o ruído que nos atafulha olhos e ouvidos seria insuficiente para apagar isto, um gigante chamado Dr. John a regressar como já não esperávamos possível. O rei de Nova Orleães, ou melhor, do voodoo enquanto música de Nova Orleães, o feiticeiro excêntrico que nos deu Gris Gris ou Remedies, redescobriu-se com Dan Auerbach, o produtor em Locked Down. O resultado é não só uma imensa majestosidade, um groove impressionante e uma voz que impõe a sua sábia autoridade”, escreveu então o jornalista e crítico do PÚBLICO.

Dr. John era um homem do palco,assumindo o papel de “grande zombie” ou “feiticeiro” e rivalizando com Elton John com os seus casacos, camisas e laços garridos, e boinas, como quando interpretou Such a night no concerto de despedida dos The Band (de Robbie Robertson), que Martin Scorsese registou e eternizou no filme A Última Valsa (1978).

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